Uma
voz feminina é dona do relato. O laço afetivo que irá estabelecendo com a nova
empregada e a solidão em que vive a levam a visitá-la no dia do aniversário.
Sobe o morro e se depara com o que já conhecia pelas palavras de Amélia: a rua sem calçamento, a venda, o portão de madeira, as plantas. Antes, o
trajeto que, aos poucos, vai anunciando outra história urbana: as primeiras
casas depois dos prédios, placas anunciando quartos para alugar, samambaias
plantadas em latas, cimento batido, mato invadindo canteiros. E a subida das
escadas, permitindo, então, ver o mar. Também, sentir o cheiro da favela e outro cenário feito da encosta violenta coberta de mato, sulcos arenosos,
marcas de pé. Cantares errantes. Galinhas ciscando, gatos se distendendo, o
porco fuçando o lixo, uma criatura desgrenhada empurrando a janela, outra
escolhendo, num alguidar, restos de verdura, frutas de mau aspecto. Na casa
de Amélia, a ingenuidade dos objetos, a
boneca, vestida de tafetá, embrulhada em celofane por causa das moscas. Branca,
cabelos louros as palmas bentas, a imagem de São Jorge, o rádio de
cabeceira, a colcha de rendas forrada de
seda salmão, tapete de retalhos. Nas vizinhas, a mesma submissão diante da
vida. A mulher, cujo marido é bêbado e quebra as coisas; a outra, que sai para
trabalhar e deixa as crianças trancadas em casa; a que se mata de lavar roupa
para fora e, ainda, apanha do marido; ou a que é lavadeira e à noite, lhe
roubam a roupa que estendeu para secar; a que deseja constituir família e bebe
e fica triste e, finalmente, se suicida por estar cansada de viver; a que
decide dar o filho antes de nascer porque não tem condições de criar. Evidente
o descompasso dessas vidas – e da vida do homem que foi preso em 45 e desde
então não arranja emprego, do que foi torturado pela polícia sem nunca ter se
filiado a nenhum partido, do que não trabalha, do que se embebeda – com aquela
que deveriam ter o direito de viver. Porém, só lhes resta aceitar viver em
barracos, no morro, onde fazer bom tempo é importante, pois, se chove, a
enxurrada cobre de terra as escadas, as pedras desmoronam e falta água e falta
luz.
Ao entardecer,
quase noite, depois do bolo e dos biscoitos, das balas enroladas em papel de
seda, a descida, deixando para trás o rego de água, as plantas do quintal, o
puxado da cozinha, os homens sem sapatos, sem camisa, a fazer a barba na frente
de um espelho. O cheiro da favela, onda
quente, como se exalada de um grande cadáver exposto que fica na roupa, nas
mãos, na garganta, deixando a impressão de que nunca sairá, nenhum sabão o poderá tirar. Em Copacabana, a agitação de
sempre com seus cinemas e seus bares, contraste com a realidade feita de
sofrimentos – as inadaptações, as surpresas, as impossibilidades, o pasmo
– que se repetem, sempre, para a gente que sobe o morro, no fim do dia, com
seus desejos sempre mais distantes.
Prisioneira
dos liames com os quais se enredou para fugir daqueles que a tolhiam, alheia ao
mundo dos seus e incapaz de se inserir no mundo dos outros, a narradora de Entre
lobo e cão, atônita e rebelde, permanece entre dois mundos. Mas, sem
inocência.

Nenhum comentário:
Postar um comentário