domingo, 7 de dezembro de 2003

O morro

            Amélia mora no morro e desce para trabalhar em Copacabana. A patroa gosta de seu jeito, escuta as suas histórias e, assim, vai lhe conhecendo as vizinhas e a luta sem vitórias do cotidiano da pobreza no seu cenário degradado. Nele, e nos seus habitantes, se detém, por vezes, Entre lobo e cão, romance de Julieta de Godoy Ladeira, publicado, em 1971, pela José Olympio do Rio de Janeiro
   
         Uma voz feminina é dona do relato. O laço afetivo que irá estabelecendo com a nova empregada e a solidão em que vive a levam a visitá-la no dia do aniversário. Sobe o morro e se depara com o que já conhecia pelas palavras de Amélia: a rua sem calçamento, a venda, o portão de madeira, as plantas. Antes, o trajeto que, aos poucos, vai anunciando outra história urbana: as primeiras casas depois dos prédios, placas anunciando quartos para alugar, samambaias plantadas em latas, cimento batido, mato invadindo canteiros. E a subida das escadas, permitindo, então, ver o mar. Também, sentir o cheiro da favela e outro cenário feito da encosta violenta coberta de mato, sulcos arenosos, marcas de pé. Cantares errantes. Galinhas ciscando, gatos se distendendo, o porco fuçando o lixo, uma criatura desgrenhada empurrando a janela, outra escolhendo, num alguidar, restos de verdura, frutas de mau aspecto. Na casa de Amélia, a ingenuidade dos objetos, a boneca, vestida de tafetá, embrulhada em celofane por causa das moscas. Branca, cabelos louros as palmas bentas, a imagem de São Jorge, o rádio de cabeceira, a colcha de rendas forrada de seda salmão, tapete de retalhos. Nas vizinhas, a mesma submissão diante da vida. A mulher, cujo marido é bêbado e quebra as coisas; a outra, que sai para trabalhar e deixa as crianças trancadas em casa; a que se mata de lavar roupa para fora e, ainda, apanha do marido; ou a que é lavadeira e à noite, lhe roubam a roupa que estendeu para secar; a que deseja constituir família e bebe e fica triste e, finalmente, se suicida por estar cansada de viver; a que decide dar o filho antes de nascer porque não tem condições de criar. Evidente o descompasso dessas vidas – e da vida do homem que foi preso em 45 e desde então não arranja emprego, do que foi torturado pela polícia sem nunca ter se filiado a nenhum partido, do que não trabalha, do que se embebeda – com aquela que deveriam ter o direito de viver. Porém, só lhes resta aceitar viver em barracos, no morro, onde fazer bom tempo é importante, pois, se chove, a enxurrada cobre de terra as escadas, as pedras desmoronam e falta água e falta luz.

Ao entardecer, quase noite, depois do bolo e dos biscoitos, das balas enroladas em papel de seda, a descida, deixando para trás o rego de água, as plantas do quintal, o puxado da cozinha, os homens sem sapatos, sem camisa, a fazer a barba na frente de um espelho. O cheiro da favela, onda quente, como se exalada de um grande cadáver exposto que fica na roupa, nas mãos, na garganta, deixando a impressão de que nunca sairá, nenhum sabão o poderá tirar. Em Copacabana, a agitação de sempre com seus cinemas e seus bares, contraste com a realidade feita de sofrimentos – as inadaptações, as surpresas, as impossibilidades, o pasmo – que se repetem, sempre, para a gente que sobe o morro, no fim do dia, com seus desejos sempre mais distantes.

            Prisioneira dos liames com os quais se enredou para fugir daqueles que a tolhiam, alheia ao mundo dos seus e incapaz de se inserir no mundo dos outros, a narradora de Entre lobo e cão, atônita e rebelde, permanece entre dois mundos. Mas, sem inocência.

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