domingo, 21 de dezembro de 2003

Charla de Natal

 

    O título do poema anuncia uma conversa, mas, na verdade, as palavras pertencem, apenas, ao emissor da mensagem. Cinco estrofes, quartetos de rimas perfeitas, inscritas num universo gauchesco de fronteira para se aproximar, a seu modo, de um tema universal: o nascimento de Cristo. No primeiro verso, o possessivo meu (meu Cristo) indica uma relação afetiva que se amplia no emprego de um inusual diminutivo, igualmente precedido do possessivo de primeira pessoa (meu Jesus-Cristinho). E permite esse ir chegando (que a expressão se não levar a mal, advoga), após longa jornada (que o adjetivo basteriado, classificando o cavalo, denuncia) e desmontar (implícito no verbo desencilho ), dando por assente a permissão para um ato já consumado.

            O segundo quarteto, repete a expressão afetiva, antecedendo-a, não mais, do cumprimento Buenas (simplificação do espanhol platino para “buenas tardes”, “buenas noches”), mas de um agradecimento, gracias (igualmente um termo espanhol, “obrigado”) pela acolhida na estrebaria. Palavra que remete a um espaço e a um momento determinado, o nascimento de Cristo, já anunciado na menção da palavra Estrela, grafada com letra maiúscula para reafirmar a sua condição de única, de guia e antecedida, também, (como estrebaria) do pronome de terceira pessoa a revelar um possuidor (da Estrela e da estrebaria) inegável que irá justificar o diminutivo Jesus-Cristinho, pois é ao Cristo recém nascido que as palavras se dirigem. Nas três estrofes que seguem, subjacentes, as figuras dos Reis Magos quando explica porque não oferta incenso, nem ouro, só a mirra. Nega-se a louvar o menino (Não vim, Jesús-Cristinho pra incensá-lo),  amparando-se na sua rústica e convicta altivez e se iguala ao cambará de cerno duro (nas três palavras, a expressão de resistência, de invencibilidade) e nas suas convicções e nas suas crenças: acredita no maléfico da vida e endeusa as mulheres e o cavalo. Se não lhe dá ouro é porque nada possui, chega de mãos vazias e só tem de seu, pessuelos magros, uma lasca de charque, avios de mate para suprir as necessidades e uma garrafa de cachaça como remédio, caso seja preciso, para o mal de amor. A mirra, sim, lhe traz. Feita de sua humanidade – pecados ou sina – que se ilumina no sofrimento de saber, de adivinhar a terrível morte que ao menino está adjudicada para saldar culpas alheias. Parte das quais – entendendo-se por homem marcado pelo pecado – ele assume ao compreender que essa morte será, também, por seus diabos, seus pecados.

            Remetendo à verdade bíblica, ainda que limitado no possessivo de primeira pessoa, meus diabos, o último verso sensibiliza pela imensidade do drama (a morte de um inocente) que não deixa de ser lamentado pelos cristãos. Porém, o que, no poema, se faz profundamente tocante é a ingênua, espontânea, solidariedade expressa no segundo quarteto, posso ajudá-lo, já que está sozinho, relacionada com o verso anterior, embora apeie com estas mãos vazias a significar que ninguém é tão pobre que nada possa oferecer. Seja, apenas, esse préstimo para minorar a solidão, sentimento inerente à condição dos homens e do qual Jesús Cristo, deus feito homem, e homem pobre, não foi poupado.

            Por esse inesperado trato do tema religioso, pelo inspirado das determinações de tempo e espaço e pela qualidade do ritmo, “Charla de Natal”, de Apparicio Silva Rillo, publicado em 19 de dezembro de 1981 no “Letras e Livros”, do Correio do Povo de Porto Alegre, se constitui , neste enraizar-se no linguajar campeiro do Rio Grande do Sul e neste perfil do gaúcho feito de altivez desmesurada, de crenças e descrenças e de um parco possuir, como tantas vezes, um momento privilegiado da sua produção poética.

 

 

Basteriado: o animal que sofreu escoriações causadas pelo atrito do lombilho com a pele .No poema, usado na forma próxima do espanhol, bastereado e não da forma portuguesa basteirado, da qual é uma variante. Boteja: ainda que a palavra conste como botelha no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, com o significado de garrafa e tendo como origem, a palavra francesa bouteille, conforme consta no poema é a grafia de botella, termo espanhol que os platinos pronunciam com o som de jota português. Está registrado no Vocabulário de Regionalismo do Rio Grande do Sul, de Zeno e Rui Cardoso Nunes e não no Vocabulário Sul Riograndense, editado pela Globo de Porto Alegre o que indica um uso menos frequente ou mais recente.


Canha: grafado com nh e com o significado de cachaça, está registrado no Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda como oriundo do espanhol platino e como regionalismo do Rio Grande do Sul.


Charla: que no Aurélio consta como oriundo do italiano, significando tagarelice, é registrado pelos irmãos Cardoso Nunes como conversa, conforme é o uso dos platinos.

China: nos três dicionários já referidos, aparece com várias conotações, entre elas, a de mulher descendente de índios, mulher morena e mulher de vida fácil. No poema é usado, na acepção (além dessas referidas) que lhe conferem os platinos: mulher, no sentido carinhoso; mulher amada. (Diccionario del lenguaje campesino rioplatense, de Juan Carlos Guarnieri e Diccionario de Voces y expresiones argentinas, de Felix Coluccio).

 

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