Do
mundo que ela quis fugir, lembra os cenários. Esse quarto da casa da avó onde,
por vezes, dormia, móveis de pau marfim –
guirlandas entalhadas na cabeceira da cama, pequenos laços, flores. Psichê com espelho de três faces, escrivaninha,
cortinado de tule, caindo do teto. E as bandejas de prata, os compridos
vasos com flores, os aparadores de estilo da casa da mãe, cujos desejos
(fontes, pérgulas de mármore, empregado de jaqueta com botões dourados para
abrir o portão, casamento da filha numa igreja decorada com lírios e camélias,
quatro meninas da família, vestidas de rosa pálido, abrindo o cortejo que
passaria entre senhoras de lornhão a elogiar a noiva, o bom gosto do vestido, a distinção da mãe, a estirpe dos padrinhos)
não levavam em consideração a situação difícil do marido a pagar dívidas de outros por letras que endossara.
Na
mediocridade de sua vida – casar-se à revelia da família não lhe fora
proveitoso –, procura mostrar à mãe quando, por uma vez, a visita no Rio de
Janeiro, um ambiente agradável, padrão ideal de vida para as jovens bem
nascidas [...].Também, faz um esforço para conviver, ainda que por pouco
tempo, com a família ao ir a São Paulo para um enterro. Difícil lhe resulta
escutar o que dizem os primos e o que diz desse convívio, mostra o lamentável e
o ridículo dos que se acreditam superiores aos demais, não parecendo, porém,
saber, exatamente, em que.
Nesse
relato que, então, faz, mal se desenham
as primas: Maria Elisa com sua beleza de
governanta belga, Dinah tão gorda, quase irreconhecível. Distantes pelo
tempo que passou e pelos rumos diferentes que seguiram, o passado em comum não é
suficiente para um reencontro, marcado pela impossibilidade de comunicação.
Tento conversar, ela diz mas sinto a boca presa por nervos que a repuxam, silenciando-me. Cheia de
significados, então, a descrição do almoço que reúne a família. Servido às duas
horas da tarde de um domingo, na mesa, toalha de linho irlandês, bordada à mão,
tendo, no centro, tulipas alaranjadas. E uma abundância na qual se mesclam a
salada de maionese, enfeitada com tomates
recheados, ovos cozidos, fatias de rosbife, torta de camarão, risoto, pernil com farofa, ameixa preta e abacaxi passados na chapa, vagem e
cenoura e salada de pepino em pequena
salva de cristal, virado de feijão com lingüiça calabresa. O parágrafo que
se lhe segue, é uma espécie de título, A
família está reunida, ironicamente anunciando os diálogos e o universo no
qual eles se inscrevem. Rostos parecidos,
tiques semelhantes. Já não há parentescos mencionados, tampouco nomes.
Apenas breves frases, curtas seqüências que expõem as opiniões de uma classe
que se quer de elite e denota viver no mais exíguo dos mundos: observações
sobre comidas (Faz referência, com certa languidez, a pratos de
outros domingos, Recorda-se um
passado strogonoff, Eu faço essa torta com galinha, também fica
gostosa), formaturas, necessidade de chuva, empregada doméstica. Estreiteza
de um universo completado nas sequências seguintes, que se alternam para esboçar, já agora, os
mundos que se opõem. Um deles, presente nas palavras dos convivas, feitas de
saudosismo (Eu tinha quem fizesse meus cachos, quem calçasse meus sapatos),
fórmulas para emagrecer (Esses remédios
descontrolam os nervos. O negócio é regime, passar fome:, Já ouvi falar nesse
médico. Ele faz a gente emagrecer quatro quilos em poucas semanas), casa
nova (Acho jardim de inverno
indispensável), decoração de Natal em Nova Iorque (vai ser uma beleza),
piada preconceituosa (em Nova Iorque decerto
vão dar um negro para cada criança branca acender, na janela, ao romper
do Ano Bom”), construção de uma capela no jardim do asilo, família (Filho é bom porque distrai, Eu ficando sem empregada, já disse:
restaurante, meus filhos.),
carro, cabeleireiro, comentários presumivelmente definitivos (Povos atrasados não podem ser livres). O outro mudo, presente nas
constatações da narradora a historiar um fato lamentável (morre um rapaz por
falta de assistência médica e a mãe ao se desesperar e agredir o poder público
é presa e, ao ser solta, já não mais é
dona de seu juízo perfeito) e de referências a cifras vergonhosas (80% das habitações em Belém são servidas por
água de poço; em Fortaleza, 71%; em São
Paulo, 50%), de constatações (somente
as famílias que recebem mais de 4 salários mínimos conseguem equilibrar seus orçamentos. Um equilíbrio que desmorona a
cada sarampo, a cada Dia das Mães).
Entremeando-se
a esses lugares comuns, enunciados pelos convivas ao redor da mesa e as
informações da narradora sobre uma realidade que não convém mencionar, a
enumeração de sobremesas que, também, delimitam cenário e figurantes: pavê de chocolate, pudim de laranja, baba
de anjo, doce de leite.
Estabelecida a narrativa num jogo do tempo
(ora presente, ora passado) e dos diálogos (múltiplas vozes de indeterminados
interlocutores) e conduzida pelo testemunho de uma narradora que se move entre
a lucidez, o espanto e a inércia, Julieta de Godoy Ladeira cria em Entre
Lôbo e cão (José Olympio, 1971), não apenas uma elaborado mundo ficcional,
mas uma contundente crônica da mentalidade de sua época. E com a maestria que
justifica ter sido considerada por Dyonélio Machado em entrevista concedida a
Miguel de Almeida (Folha de São Paulo de 8 de novembro de 1981), a mais
completa entre as romancistas atuais no Brasil.

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