domingo, 28 de dezembro de 2003

O almoço 1

            Do mundo que ela quis fugir, lembra os cenários. Esse quarto da casa da avó onde, por vezes, dormia, móveis de pau marfim – guirlandas entalhadas na cabeceira da cama, pequenos laços, flores. Psichê com espelho de três faces, escrivaninha, cortinado de tule, caindo do teto. E as bandejas de prata, os compridos vasos com flores, os aparadores de estilo da casa da mãe, cujos desejos (fontes, pérgulas de mármore, empregado de jaqueta com botões dourados para abrir o portão, casamento da filha numa igreja decorada com lírios e camélias, quatro meninas da família, vestidas de rosa pálido, abrindo o cortejo que passaria entre senhoras de lornhão a elogiar a noiva, o bom gosto do vestido, a distinção da mãe, a estirpe dos padrinhos) não levavam em consideração a situação difícil do marido a pagar dívidas de outros por letras que endossara.


            Na mediocridade de sua vida – casar-se à revelia da família não lhe fora proveitoso –, procura mostrar à mãe quando, por uma vez, a visita no Rio de Janeiro, um ambiente agradável, padrão ideal de vida para as jovens bem nascidas [...].Também, faz um esforço para conviver, ainda que por pouco tempo, com a família ao ir a São Paulo para um enterro. Difícil lhe resulta escutar o que dizem os primos e o que diz desse convívio, mostra o lamentável e o ridículo dos que se acreditam superiores aos demais, não parecendo, porém, saber, exatamente, em que.

            Nesse relato que, então, faz,  mal se desenham as primas: Maria Elisa com sua beleza de governanta belga, Dinah tão gorda, quase irreconhecível. Distantes pelo tempo que passou e pelos rumos diferentes que seguiram, o passado em comum não é suficiente para um reencontro, marcado pela impossibilidade de comunicação. Tento conversar, ela diz  mas sinto a boca presa por nervos que a repuxam, silenciando-me. Cheia de significados, então, a descrição do almoço que reúne a família. Servido às duas horas da tarde de um domingo, na mesa, toalha de linho irlandês, bordada à mão, tendo, no centro, tulipas alaranjadas. E uma abundância na qual se mesclam a salada de maionese, enfeitada com tomates recheados, ovos cozidos, fatias de rosbife, torta de camarão, risoto, pernil com farofa, ameixa preta e abacaxi passados na chapa, vagem e cenoura e salada de pepino em pequena salva de cristal, virado de feijão com lingüiça calabresa. O parágrafo que se lhe segue, é uma espécie de título, A família está reunida, ironicamente anunciando os diálogos e o universo no qual eles se inscrevem. Rostos parecidos, tiques semelhantes. Já não há parentescos mencionados, tampouco nomes. Apenas breves frases, curtas seqüências que expõem as opiniões de uma classe que se quer de elite e denota viver no mais exíguo dos mundos: observações sobre comidas (Faz referência, com certa languidez, a pratos de outros domingos, Recorda-se um passado strogonoff, Eu faço essa torta com galinha, também fica gostosa), formaturas, necessidade de chuva, empregada doméstica. Estreiteza de um universo completado nas sequências seguintes,  que se alternam para esboçar, já agora, os mundos que se opõem. Um deles, presente nas palavras dos convivas, feitas de saudosismo (Eu tinha quem fizesse meus cachos, quem calçasse meus sapatos), fórmulas para emagrecer (Esses remédios descontrolam os nervos. O negócio é regime, passar fome:, Já ouvi falar nesse médico. Ele faz a gente emagrecer quatro quilos em poucas semanas), casa nova (Acho jardim de inverno indispensável), decoração de Natal em Nova Iorque (vai ser uma beleza), piada preconceituosa (em Nova Iorque decerto vão dar um negro para cada criança branca acender, na janela, ao romper do Ano Bom”), construção de uma capela no jardim do asilo, família (Filho é bom porque distrai, Eu ficando sem empregada, já disse: restaurante, meus filhos.), carro, cabeleireiro, comentários presumivelmente definitivos (Povos atrasados não podem ser livres). O outro mudo, presente nas constatações da narradora a historiar um fato lamentável (morre um rapaz por falta de assistência médica e a mãe ao se desesperar e agredir o poder público é presa e, ao ser  solta, já não mais é dona de seu juízo perfeito) e de referências a cifras vergonhosas (80% das habitações em Belém são servidas por água de poço; em Fortaleza, 71%; em São Paulo, 50%), de constatações (somente as famílias que recebem mais de 4 salários mínimos conseguem equilibrar seus orçamentos. Um equilíbrio que desmorona a cada sarampo, a cada Dia das Mães).

            Entremeando-se a esses lugares comuns, enunciados pelos convivas ao redor da mesa e as informações da narradora sobre uma realidade que não convém mencionar, a enumeração de sobremesas que, também, delimitam cenário e figurantes: pavê de chocolate, pudim de laranja, baba de anjo, doce de leite.

             Estabelecida a narrativa num jogo do tempo (ora presente, ora passado) e dos diálogos (múltiplas vozes de indeterminados interlocutores) e conduzida pelo testemunho de uma narradora que se move entre a lucidez, o espanto e a inércia, Julieta de Godoy Ladeira cria em Entre Lôbo e cão (José Olympio, 1971), não apenas uma elaborado mundo ficcional, mas uma contundente crônica da mentalidade de sua época. E com a maestria que justifica ter sido considerada por Dyonélio Machado em entrevista concedida a Miguel de Almeida (Folha de São Paulo de 8 de novembro de 1981), a mais completa entre as romancistas atuais no Brasil.

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