domingo, 4 de janeiro de 2004

O almoço 2

            “Luneta Sinfonia Maremoto” é o trigésimo capítulo de Entre lobo e cão (José Olympio, 1971) e, como os demais, feito de três palavras que, aparentemente, não guardam relação entre si e, quem sabe, com o texto que introduz. Tem início com o relato da narradora sobre o seu despertar em outro quarto que não o seu, deitada em outra direção, dentro de uma claridade diferente, entre barulhos que estranha, mas que lhe resultam parte do cenário que já foi o seu e para o qual retorna para cumprir um rito familiar o que significa submeter-se a outros, como o do almoço em família.



            Julieta de Godoy Monteiro ao lhe conceder a voz, o faz com a segurança de um ficcionista que em sábia dosagem mescla o imaginário com o real numa expressiva diluição de limites. Primeiro é essa constatação da impossibilidade de manter uma conversa com a prima como se ela falasse uma linguagem de mau gosto, calão impossível, dialeto estranho, ou se sua voz viesse de muito longe, tornando inútil qualquer resposta assim como  com os demais a enunciarem, durante o almoço, os mais puros lugares comuns: frases que brotam de suas estruturas, certos de suas verdades, por elas escudados, temendo duvidar, não parando para ver se contém algum sentido de justiça. Alguém diz O mise em plis do Antoninho não dura nada . Outro alguém firma:  Mãe é mãe, . Ou, então Não vamos falar em política. É sempre desagradável, ou ainda Pudim de laranja? Eu adoro. Entre tais asserções, as seqüências da narradora apontando para outra realidade que não é levada em consideração por esses interlocutores e aquelas que exprimem o seu desconforto: Talvez percebam que sou uma anormalidade em seu meio. Talvez jamais cheguem a perceber alguma coisa. Também Pouso os talheres. Todo o interior do meu corpo sofre convulsões, sinto que começam a se tornar visíveis no tremor das mãos e dos lábios, percebo que parte de meu rosto adormece, essa anestesia alcança os ouvidos, tenho medo de a qualquer momento perder o controle dos meus gestos, sem poder voltar ao normal. Depois, um novo capítulo com o título, “Prosseguem”. Isto é, continuam os enunciados sobre os bons casamentos, a dívida alheia, o cavalo de hípica adquirido por vários milhões, conselhos culinários (Ponha canela e um pingo de baunilha, Dissolva um pouco de gelatina branca em um pouco de água morna), questões familiares (Mulher fica lidando com o açougue, filhos. Então não pode luxar?) e, também, entremeando-se, alguma lembrança do passado, ainda o desconforto (Isso, antes não me atingia tanto). A enumeração de frutas (uvas moscatel, pêssego, figos, salada de frutas com pedaços de gelo) e a chegada das xícaras de café, em bandeja de prata, trazida pela empregada, a empurrar, com lentidão, o carrinho e, mais tarde, o conhaque. Entretanto, dois longos parágrafos, incisivos, enumeram as verdades dos seus (mulheres virtuosas, homens eficientes, todos bem intencionados, limpos), que estabelecem, convictos, o bem e o mal num mecanismo automático que montam para a distribuição, a seu critério, de favores divinos e oficiais. Descendem daqueles que matavam índios, traficavam escravos e, há 400 anos, tentam esconder as origens com a lenda das esmeraldas, com o orgulho das sesmarias, o poder do café. Moram em Higienópolis, em casas com lareiras de mármores, portas de madeira de lei, paredes revestidas de brocados. E dão fé das verdades que lhes convém quando se referem aos outros: que eles estão habituados com menos, que são felizes assim, E que cada um nasce com o seu destino, homens atrasados não podem ser livres, Felizes são os pretos que ficam lá perto da fábrica esburacando a rua. Dão risada o dia inteiro. Nossa lei trabalhista é adiantada demais para nossos empregados.

            Páginas antes, no capítulo anterior, a breve menção à empregada Eufrasina que ficou tuberculosa e, segundo o médico, precisava tomar gemas frescas todos os dias e descansar depois do almoço. Foi embora e acabou enlouquecendo sendo encontrada morta num depósito de lixo.  E as senhoras promoviam quermesses, chás de caridade com brioches recheados de creme...

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