“Luneta
Sinfonia Maremoto” é o trigésimo capítulo de Entre lobo e cão (José
Olympio, 1971) e, como os demais, feito de três palavras que, aparentemente,
não guardam relação entre si e, quem sabe, com o texto que introduz. Tem início
com o relato da narradora sobre o seu despertar em outro quarto que não o seu, deitada em outra direção, dentro de uma claridade diferente, entre barulhos
que estranha, mas que lhe resultam parte do cenário que já foi o seu e para o
qual retorna para cumprir um rito familiar o que significa submeter-se a
outros, como o do almoço em família.

Julieta
de Godoy Monteiro ao lhe conceder a voz, o faz com a segurança de um ficcionista
que em sábia dosagem mescla o imaginário com o real numa expressiva diluição de
limites. Primeiro é essa constatação da impossibilidade de manter uma conversa
com a prima como se ela falasse uma
linguagem de mau gosto, calão impossível, dialeto estranho, ou se sua voz
viesse de muito longe, tornando inútil qualquer
resposta assim como com os demais a
enunciarem, durante o almoço, os mais puros lugares comuns: frases que brotam de suas estruturas, certos
de suas verdades, por elas escudados, temendo duvidar, não parando para ver se
contém algum sentido de justiça. Alguém
diz O mise em plis do Antoninho não dura nada . Outro alguém
firma: Mãe é mãe, . Ou, então Não
vamos falar em política. É sempre desagradável, ou ainda Pudim de laranja? Eu adoro. Entre tais
asserções, as seqüências da narradora apontando para outra realidade que não é
levada em consideração por esses interlocutores e aquelas que exprimem o seu
desconforto: Talvez percebam que sou
uma anormalidade em seu meio. Talvez
jamais cheguem a perceber alguma coisa. Também Pouso os talheres. Todo o interior do meu corpo sofre convulsões, sinto
que começam a se tornar visíveis no tremor das mãos e dos lábios, percebo que
parte de meu rosto adormece, essa anestesia alcança os ouvidos, tenho medo de a
qualquer momento perder o controle
dos meus gestos, sem poder voltar ao normal. Depois, um novo capítulo com o
título, “Prosseguem”. Isto é, continuam os enunciados sobre os bons casamentos,
a dívida alheia, o cavalo de hípica adquirido por vários milhões, conselhos
culinários (Ponha canela e um pingo de
baunilha, Dissolva um pouco de
gelatina branca em um pouco de água
morna), questões familiares (Mulher
fica lidando com o açougue, filhos.
Então não pode luxar?) e, também, entremeando-se, alguma lembrança do
passado, ainda o desconforto (Isso, antes
não me atingia tanto). A enumeração de frutas (uvas moscatel, pêssego, figos, salada de frutas com pedaços de gelo)
e a chegada das xícaras de café, em bandeja de prata, trazida pela empregada, a
empurrar, com lentidão, o carrinho e, mais tarde, o conhaque. Entretanto, dois
longos parágrafos, incisivos, enumeram as verdades dos seus (mulheres virtuosas, homens eficientes, todos bem intencionados, limpos), que estabelecem, convictos, o bem e o
mal num mecanismo automático que montam
para a distribuição, a seu critério, de favores divinos e oficiais. Descendem daqueles que matavam
índios, traficavam escravos e, há 400 anos, tentam esconder as origens com a lenda das esmeraldas, com o orgulho
das sesmarias, o poder do café.
Moram em Higienópolis, em casas com lareiras de mármores, portas de madeira de
lei, paredes revestidas de brocados. E dão fé das verdades que lhes convém
quando se referem aos outros: que eles
estão habituados com menos, que são felizes assim, E que cada um nasce
com o seu destino, homens atrasados
não podem ser livres, Felizes são os pretos que ficam lá perto da
fábrica esburacando a rua. Dão risada o dia inteiro. Nossa lei
trabalhista é adiantada demais para nossos empregados.
Páginas
antes, no capítulo anterior, a breve menção à empregada Eufrasina que ficou
tuberculosa e, segundo o médico, precisava tomar gemas frescas todos os dias e
descansar depois do almoço. Foi embora e acabou enlouquecendo sendo encontrada
morta num depósito de lixo. E as senhoras promoviam quermesses, chás de
caridade com brioches recheados de
creme...
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