Dançavam as listas, os chapéus redondos das
índias, dançavam, flutuavam, os movimentos do ônibus pareciam os de um barco.
E é dentro do ônibus, ou de suas janelas, que Osman Lins as entrevê. Presenças
que mal se desenham em meio ao relato de sua acidentada viagem por estradas
andinas, em 1977, e que resultou em La Paz existe?, publicado pela
Summus de São Paulo e no qual se entremeiam textos de sua mulher, Julieta de
Godoy Ladeira. De Lima, viajaram, de avião, a Cuzco e de lá partiram de ônibus
para La Paz aonde chegariam depois de conhecer o lago Titicaca e suas ilhas. A
viagem, porém, sofreu reveses. Ao chegar a Puno e mudando de ônibus e de
itinerário, ela se prolongou e em condições muito precárias, aquelas que soem
enfrentar os habitantes do lugar nesses ônibus, verdadeiros produtos heterogêneos da mecânica andina,
filhos milagrosos da sucata, fantásticas ressurreições dos ferros-velhos,
negações dos cemitérios de automóveis, fusões do desenho industrial, unindo com
imaginação e galhardia fragmentos da Ford, da Chevrolet, da Volvo, da Mercedes,
da Alfa Romeo, talvez de Studebakers, de Chryslers, de Rolls-Royces, de Opels, de
Austins, de Romi-Isetttas, todos de cores vistosas, escada ao lado e bagageiro
na capota. Assim, à exceção de um professor (cioso de sua cor e,
conseqüentemente, dos direitos que entendia ter), eram todos índios os
companheiros de viagem. Silenciosos, suas
conversas murmuradas, vagos
diálogos em língua indígena. Entre as índias, algumas, inquietas, abriam e
fechavam touxas. Tinham o rosto, no dizer de Osman Lins, quase sempre belos, de uma beleza de cerâmica, que o vento
seco e o sol das alturas marcavam de placas escuras. Eram robustas e rijas sob
as muitas saias e, comendo com as mãos, utilizavam os dedos com agilidade e leveza. Olhando-as, lá
fora, pela janela do ônibus, via essas outras que lhe pareciam sujas, mas
cujas roupas tinham cores que se
harmonizavam; embora descalças ou usando sapatos velhos, mostravam elegância no modo como põem na cabeça os seus chapéus. Longe,
distingue a menina, enlameada, tangendo um rebanho de carneiros e outra,
tentando assustar duas lhamas. Em Juli, umas cinco ou seis índias, de pé e em
círculo e de cabeça baixa, indiferentes à chuva; perto de um milharal, um
índio, inclinado, a trabalhar. E,
agachadas, na frente do hotel, três índias teciam. Já partindo da cidade, o
grupo de índios, homens e mulheres que dançavam ao som de flautas, pandeiros,
tambores e agitavam borlas de bastões de cor. Em Desaguadero, cidade de
fronteira, antes de continuar a viagem, percebeu um ar de festa
fervilhando de vida, de música, nos
gritos, no vozerio, nas cores, no movimento de ida e vinda, no comércio, nas
mercadorias espalhadas no chão – obras de tecelagem e frutas. Mas, ao mesmo tempo, as fachadas escuras das
casas, as ruas sem calçadas, com poças fundas de lama em toda a largura, onde
essa população de desamparados ia enterrando os pés, a sujeira que amortecia os
verdes, os vermelhos e os amarelos das roupas, o ar remoto e contemplativo dos
rostos, a mesquinhez dos negócios e
talvez o céu cinzento se opunham a essa exaltação, oprimiam.
Personagens
que se inserem num cenário. Figuras distantes que, assim, distantes,
permanecem, sempre, face ao estrangeiro. Mesmo quando fazem uma gentileza, como
a índia velha e corpulenta, o rosto
autoritário todo cortado de rugas, que, no ônibus, trocou o dinheiro
necessário para que Osman Lins pudesse pagar a passagem e que feito isso,
olhando para a frente, impassível, lhe ignorou os agradecimentos. Ou como
Hernández, cara crestada, cor de cera, de
pouca conversa, quase incapaz de rir,
o motorista do táxi que os levou até Desaguadero. Mal falou durante as duas
horas de viagem, porém se mostrou solícito, ajudando a vencer as formalidades
da fronteira, sem intenção de receber gorjeta. E se os índios quase o
apedrejaram quando tentou fotografar um funeral, foi por ter se deixado levar pela frivolidade, como ele mesmo reconheceu
(tendência de
profanar – que, ainda mais ostensiva fora de seu meio, caracteriza o homem
urbano). Nessa convivência de muitas horas que resultou sem palavras, mais
uma vez, então, foi apenas o olhar que o conduziu para um dos mais belos
registros da viagem: Mulheres e homens,
em dois grupos separados, não estavam
com as suas melhores roupas: estavam todos de negro. Os homens de pé, todos de
chapéu, formavam um círculo; as mulheres formavam outro círculo à distância,
mas estavam de joelhos ou sentadas no chão. Era um cemitério pedregoso, coberto
de uma vegetação rala, tão pobre quanto os outros, sem muros, perdido na
vastidão da paisagem. Começava a chover e os participantes não prestavam
atenção à chuva. Entre um grupo e outro – e, mesmo entre um membro e outro de
cada grupo isolado – havia um ritmo harmonioso que a imensidade do espaço não
turbava, eles pareciam distribuídos no cenário por um caprichoso diretor de
cena que houvesse calculado maduramente o efeito. Não eram simples aglomeração.
Neles, em conjunto e individualmente, algo se manifestava, articulado, de
maneira profunda: o sentimento da morte, intenso, gerava, nos seus ritos, uma
límpida expressão poética e harmoniosa”
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