domingo, 11 de janeiro de 2004

Viagem no Continente: os contornos


                                                                    Para Sinval Medina. 

            A semana de Carnaval de 1977, Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira a passaram entre Lima e La Paz numa viagem de inesperadas descobertas. De Cuzco, seguiriam, por terra, até a capital da Bolívia, passando pelo Titicaca, segundo acerto com a o agente de turismo que lhes garantia o passeio de barco, cruzando o lago e a visita as suas ilhas.

            A viagem se inicia amena, diz Osman Lins. Haviam deixado para trás, os edifícios imponentes, os altares e os quadros e a lua brilhava. No entanto, o tempo mudou e veio a chuva que os acompanharia num trajeto feito de poças de água, pedras, atoleiros assustadores, pontes inseguras, curvas, ermos, rios para atravessar, ladeiras escorregadias, um caminho sinuoso e traiçoeiro, quase nunca transitado, cheio de altos e baixos, de costelas de burro, de valetas, de buracos. Foram trinta e cinco horas em que, mal acomodados, praticamente sem se alimentar e sem dormir e a grande aventura que lhes aconteceu foi perseguir prazos e locais de chegada num jogo do qual desconheciam as regras, até porque elas não existiam. E, mal podendo entrever algo das paragens andinas e da vida que habitava esses cenários. 

La Paz existe? foi publicado pela Summus, em 1977, e se constitui o relato dessa viagem feito por Osman Lins e por sua mulher, Julieta de Godoy Ladeira. Os textos de um e de outro se distinguem graficamente: os de Osman Lins, em caracteres redondos; os de sua mulher, em itálico. Também, pelo modo como viveram esse tempo. Osman Lins centra o seu relato no percurso Puno/La Paz e, apenas brevemente, faz referência às pedras de Machu Pichu, à espécie de hierarquia com que parece foram tratadas e as mostram polidas com zelo nas construções mais requintadas, menos cuidadas, nas que formam os muros e rústicas, nos patamares para o cultivo. E, à alguma imagem de Lima. Fugidia – o que é tão de seu gosto fixar como já o fizera ao viajar pela Europa – vista do alto, do restaurante do hotel, se detendo na cúpula rachada de uma igreja, nos destroços e sujeira sobre os terraços dos edifícios, lembrando os estragos do último terremoto e na vida se impondo: as meninas, dando banho no irmão menor; o gato, passando lento; os frangos, ciscando a contrastar com os três soldados de botas, calças vermelhas, dragonas imponentes, capacetes com penacho e túnicas imaculadas que estavam de guarda no portão do Palácio do Governo. Como que uma síntese da cidade onde, constata, as favelas não se limitam à periferia, mas invadem os tetos, tecendo aos poucos sobre os edifícios uma camada implacável de pobreza, um manto de escombros cinzento e seco. Melancólica imagem que não irá diferir daquelas que lhe serão dado ver durante o percurso até La Paz.

Do desejo de navegar pelo Titicaca e conhecer-lhe as ilhas, tornado irrealizável pela má fé de quem lhe organizou a viagem, restou, somente, poder olhar pela janela do táxi, um Volkswagen 72 e vislumbrá-lo, por um momento, vertiginoso na sua grandeza e imobilidade. Depois, sempre cambiantes, as visões grandiosas, nas quais a superfície lacustre e cumes elevados trespassavam-se e que, apesar da grandeza essas visões confrangiam pela ausência de vida. E, antes de entrar na Bolívia, já diminuído pelos detritos que boiavam nas suas margens, as águas refletindo um céu de chumbo.

            A ausência de vida e de cor, quase uma constante na paisagem de vegetação pobre ou de deserto argiloso e meio inundado, de montanhas de pedra que a erosão esculpiu, dando-lhe uma aparência demoníaca onde não voavam um pássaro, uma borboleta. E que se repete nos aglomerados urbanos, de ruas sem calçadas, lamacentas, e casarios desolados, sem luz elétrica, opressivos no seu silêncio impenetrável, nos quais não se via um ser humano, um animal, um fantasma sequer perfilado junto às casas [...]. Puno, capital do Departamento, à margem do Lago Titicaca, o porto mais alto do mundo, centro de criação de ovelhas e sede da Corte Superior de Justiça e, também, do Arcebispado, não tinha árvores. Vista de passagem, pareceu a Osman Lins soturna, lamacenta com ruas e pátios desnudos, como se ela tivesse sido erigida tão depressa – mas com material de segunda que ninguém tivera tempo de plantar sequer um arbusto e nem mesmo, talvez, de aspirar a esse luxo. Igual vazio e abandono maior, nos cemitérios, muito pequenos, pobres, tristes, nada mais do que umas cruzes à beira de estrada e que nada, nem um muro, nem quatro pedras, quatro árvores, quatro estacas demarcando um quadrado imaginário separava do resto da Terra. E a Porta do Sol de Tiahuanaco, entrevista quase ao anoitecer, as ruínas mais antigas de toda a América e que atraem pessoas do mundo inteiro (lhe dizia um companheiro de viagem), dez mil anos de enigmas incaicos, afirma a antropóloga francesa Simone Waisbard, que a Osman Lins lhe parece mais a Porta do Abandono ou da Chuva ou da Solidão ou da Lama ou do Crepúsculo Cinzento, a ruína de um Monumento à Ruína, soturno trambolho de pedra esvaziado de sua grandeza e esplendor, sem nenhuma moldura ou cuidado que o honre. Julgamento demasiado severo, talvez. Talvez originado desse desconforto diante da paisagem embarrada, da chuva, dos meandros da estrada, da insegurança quanto a chegar ao destino. Mas, ainda sim, não longe dos contornos que, até então – tristes, escuros, degradados – lhe haviam passado diante dos olhos.

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