Em
dado momento lhe pareceu que fora, juntamente com sua mulher, Julieta de Godoy
Ladeira, jogado numa esteira de mentiras,
dosadas com imprecisões voluntárias e com mensagens fictícias ou que se
perdiam, não chegavam aos seus destinatários. Estava em meio a uma viagem
que, transcorrida sem entraves, o deixaria, partindo de Cuzco, por terra, a
Juli, de onde, num barco, faria a travessia do lago Titicaca, para, então,
chegar a La Paz. Deveria ter optado pela solução
normal, realizar o trajeto Lima a
Cuzco, Cuzco a Lima, Lima a La Paz de avião. O visitante, com isto,
sobrevoa as carências dos países visitados e mergulha no passado utilizando o
transporte mais moderno. No
entanto, os imprevistos ocorridos na primeira etapa da viagem a Puno e a má fé
do agente de turismo que negociara com eles a viagem, obrigaram a uma mudança
de itinerário que passou a seguir a sugestão de um empregado inferior do Hotel dos Turistas, um homem do povo, talvez o garçom, alguém fora dos esquemas consagrados e dispendiosos
[...]. Não fazendo parte da capciosa
engrenagem turística, aconselhava uma rota fora daquelas canônicas das agências de viagem que, se
por um lado, entregava o viajante candidamente
ao desamparo, por outro, também, o conduzia ao cerne do Peru e da Bolívia [...], a sua gente a sua vida – os ermos,
as estradas que parecem abertas e conservadas a porrete, os dançarinos anônimos,
os motoristas de calhambeques, os que escorraçam o forasteiro a pedradas, as
índias solidárias, os donos de botequim, os ambulantes da fronteira, os sem
nome. Um mundo do qual Osman Lins não desviará os olhos e irá registrar, no
livro La Paz existe? (no qual se inserem textos de sua mulher, Julieta
de Godoy Ladeira) sem eludir a sua dramática realidade feita de degradação e
miséria; de algo não concluído, de algo que está a se desfazer, a ruir, visível
nos muros e nas casas, assemelhando-se a uma língua estropiada, a levar à
interrogações que são elas mesmas uma resposta: Teriam as ruínas incaicas imprimido no espírito dos índios a noção
obscura de que mutilação é um signo de grandeza, de perenidade? Ou, longe
disso, o abandono em que tudo indica que vivam, a falta de assistência e a
noção de uma vida sem futuro os levam a não concluir as suas moradias?
Porque, nessa rota andina, imperam, sobretudo, as ausências: nem posto de
saúde, nem escolas, nem eletricidade, nem estradas transitáveis, nem telefone,
nem cidades urbanizadas. Dentro do ônibus, o rigor das leis bolivianas de proteção à indústria do país e que não tardariam a
se manifestar com a presença dos guardas
aduaneiros. Vasculham o ônibus por dentro e por fora, examinam, com
minúcia, tudo o que levam os índios, lhes confiscam as pobres compras (uma
blusa barata, um simples peixe), numa operação que se repete e da qual, a
última, diz Osman Lins, já perto de La Paz, também feita por uma mulher e dois
homens, talvez por respirarem mais de perto
o tóxico ar do poder [...], resultou mais feroz do que as outras. Mexeram
em tudo, num delírio fiscalizador
refletindo como que a única preocupação real dos governos. Vigilância constante nas fronteiras, como se transitassem ali riquezas
fantásticas ou como se a simples transferência de um porco ou de uma anágua
pudesse fazer ruir toda a economia dos países limítrofes, subverter o regime,
arrancar as constelações de medalhas que ornam os peitos dos governantes. No
mais, era como se aqueles ermos estivessem entregues à própria sorte. No entanto, no mesmo ônibus, na mesma
situação, para os brancos e para os estrangeiros, a isenção de mostrar
documentos, a liberdade de transportar o proibido. Imunidade dos que são – por
quais desígnios ? – intocáveis. Para os índios, ainda nesse fevereiro de 1977,
a certeza de continuarem a ser miseravelmente espoliados.
Na
capa de La Paz existe? (Summus,
1977), criação de Cláudia Stacamacchia, sob as cores vivas que lhes compõem as
roupas, apenas visíveis – acreditam os brancos, os que governam, os que
decidem, que os índios não pensam, nem sentem – uma das mãos e os pés desse
índio a quem sempre recusaram a alma. E os direitos.

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