domingo, 25 de janeiro de 2004

Viagem no Continente: os espoliados


            Em dado momento lhe pareceu que fora, juntamente com sua mulher, Julieta de Godoy Ladeira, jogado numa esteira de mentiras, dosadas com imprecisões voluntárias e com mensagens fictícias ou que se perdiam, não chegavam aos seus destinatários. Estava em meio a uma viagem que, transcorrida sem entraves, o deixaria, partindo de Cuzco, por terra, a Juli, de onde, num barco, faria a travessia do lago Titicaca, para, então, chegar a La Paz. Deveria ter optado pela solução normal, realizar o trajeto Lima a Cuzco, Cuzco a Lima, Lima a La Paz de avião. O visitante, com isto, sobrevoa as carências dos países visitados e mergulha no passado utilizando o transporte mais moderno. No entanto, os imprevistos ocorridos na primeira etapa da viagem a Puno e a má fé do agente de turismo que negociara com eles a viagem, obrigaram a uma mudança de itinerário que passou a seguir a sugestão de um empregado inferior do Hotel dos Turistas, um  homem do povo, talvez o garçom, alguém fora dos esquemas consagrados e dispendiosos [...]. Não fazendo parte da capciosa engrenagem turística, aconselhava uma rota fora daquelas canônicas das agências de viagem que, se por um lado, entregava o viajante candidamente ao desamparo, por outro, também, o conduzia ao cerne do Peru e da Bolívia [...], a sua gente a sua vida – os ermos, as estradas que parecem abertas e conservadas a porrete, os dançarinos anônimos, os motoristas de calhambeques, os que escorraçam o forasteiro a pedradas, as índias solidárias, os donos de botequim, os ambulantes da fronteira, os sem nome. Um mundo do qual Osman Lins não desviará os olhos e irá registrar, no livro La Paz existe? (no qual se inserem textos de sua mulher, Julieta de Godoy Ladeira) sem eludir a sua dramática realidade feita de degradação e miséria; de algo não concluído, de algo que está a se desfazer, a ruir, visível nos muros e nas casas, assemelhando-se a uma língua estropiada, a levar à interrogações que são elas mesmas uma resposta: Teriam as ruínas incaicas imprimido no espírito dos índios a noção obscura de que mutilação é um signo de grandeza, de perenidade? Ou, longe disso, o abandono em que tudo indica que vivam, a falta de assistência e a noção de uma vida sem futuro os levam a não concluir as suas moradias? Porque, nessa rota andina, imperam, sobretudo, as ausências: nem posto de saúde, nem escolas, nem eletricidade, nem estradas transitáveis, nem telefone, nem cidades urbanizadas. Dentro do ônibus, o rigor das leis bolivianas de proteção à indústria do país e que não tardariam a se manifestar com a presença dos guardas aduaneiros. Vasculham o ônibus por dentro e por fora, examinam, com minúcia, tudo o que levam os índios, lhes confiscam as pobres compras (uma blusa barata, um simples peixe), numa operação que se repete e da qual, a última, diz Osman Lins, já perto de La Paz, também feita por uma mulher e dois homens, talvez por respirarem mais de perto o tóxico ar do poder [...], resultou mais feroz do que as outras. Mexeram em tudo, num delírio fiscalizador refletindo como que a única preocupação real dos governos. Vigilância constante nas fronteiras, como se transitassem ali riquezas fantásticas ou como se a simples transferência de um porco ou de uma anágua pudesse fazer ruir toda a economia dos países limítrofes, subverter o regime, arrancar as constelações de medalhas que ornam os peitos dos governantes. No mais, era como se aqueles ermos estivessem entregues à própria sorte. No entanto, no mesmo ônibus, na mesma situação, para os brancos e para os estrangeiros, a isenção de mostrar documentos, a liberdade de transportar o proibido. Imunidade dos que são – por quais desígnios ? – intocáveis. Para os índios, ainda nesse fevereiro de 1977, a certeza de continuarem a ser miseravelmente espoliados.

            Na capa de La Paz existe?  (Summus, 1977), criação de Cláudia Stacamacchia, sob as cores vivas que lhes compõem as roupas, apenas visíveis – acreditam os brancos, os que governam, os que decidem, que os índios não pensam, nem sentem – uma das mãos e os pés desse índio a quem sempre recusaram a alma. E os direitos.

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