domingo, 1 de fevereiro de 2004

Viagem no Continente: as perguntas


             Os textos de Julieta de Godoy Ladeira se intermeiam, diferenciados pelos caracteres itálicos, aos de Osman Lins no livro La Paz existe? (Summus, 1977) que eles escreveram, imediatamente depois de voltar de viagem ao Peru e a Bolívia. Textos originados de impressões, pois não tomaram notas e a narrativa se baseia, apenas, nas lembranças. Nos de Julieta de Godoy Ladeira – emoção e raciocínio – as referências aos atropelos de uma viagem que acabou se transformando, pela incúria do agente de turismo, num tormento: teve que esperar, muito tempo, sozinha, pelo marido que saíra, em busca de solução para continuar a viagem; foi obrigada a desembarcar, em pleno descampado e sob a chuva, pela falta de óleo no motor do ônibus e carregar as malas, pisando no barro, para subir às pressas, em outro veículo que mal parou para que as pessoas pudessem subir. E a menção à fome, à impossibilidade de dormir, ao cansaço, à tensão frente ao desconhecido, à indisposição, provocada pelo Mal dos Andes, o “soroche” (angústia, falta de ar, opressão, originada das grandes alturas), que a acompanharam no tempo que durou o percurso entre Puno e La Paz e, aos quais, mais do que Osman Lins, ela esteve sujeita.    

        A inquietude advinda de estar em um lugar desconhecido a percorrê-lo entre a chuva, lama e névoa, dentro de um ônibus (animal enlameado que se move), num trajeto que lhe parecia não ter fim; a dor de cabeça e dos olhos que a esmaga, a aprisiona; o frio, a exaustão. Vivências inesperadas num país em que é, e permanece estrangeira, (Sinto-me dentro de nuvens, liquefeita, e o que estarei fazendo a essa hora nesse local cujo nome ignoro? ,[...] o silêncio do lago estende-se por toda a região. Uma cápsula. Estou em seu interior, separado do mundo), mas um país que a espanta e comove. Espanto e comoção levando-a à perguntas que parece não terem respostas.


            Diante da informação dada por alguém, que fala de modo inexpressivo, pausado, quase interrogativo, ela observa  essa calma e essa indiferença no se expressar e se pergunta: Serenidade vinda dos que sabiam trabalhar as pedras, esse tom de voz seria o mesmo dos construtores de templos e cidades nos ventos da montanha?  Em Puno, onde tudo parece se erguer da lama, nascida de sua cor, de sua umidade, associando um cotidiano à água e à lama, à desolação e à sombra, se indaga sobre que tipo de vida, aí,  podem levar as pessoas. Uma vida que a pobreza, sempre visível, mostra difícil e que a faz, também, se perguntar como conseguem dinheiro para viver. Na viagem de ônibus para La Paz nota o medo e a apreensão das índias e presume que, talvez, se deva ao cansaço, ao não poder dormir no desconforto dos bancos ou à possibilidade constante de perder, nas mãos dos fiscais alfandegários, o pouco que compraram. Quando, num hotel à beira do lago Titicaca, aguarda o marido, vê as índias, lá fora, no pátio, que lhe sorriem. Bordam e mostram, de longe, seus trabalhos: Cânhamo de cor natural, desenhos ingênuos, intensamente coloridos. Lhamas, pássaros, flores. Aproximam-se da porta, oferecem, mostrando o trabalho. Julieta de Godoy Ladeira se dá conta desses mundos que o vidro separa (na verdade, ele  tem menos importância do que as razões que o determinam): Elas estão ali fora e nós do lado de dentro. Elas sentadas no chão e nós aqui entre esses móveis, já gastos a partir de sua confecção, mas ainda assim móveis e portas que separam determinam, classificam. Com que direito? E, na lembrança de uma parada do ônibus na praça de verde escasso e maltratado jardim em que as pessoas entram para vender, de banco em banco colares coloridos e pratos de comida, milho cozido e mandioca, se insere outra imagem: a do episódio ocorrido no trem para Machu Pichu, que para no meio do caminho, impedido pelas pedras de um desabamento sobre os trilhos, num lugar entre a montanha e o rio. De repente, apareceram crianças vendendo mandioca, milho e batata doce. Uma pequena índia a dizer o preço em inglês. Julieta de Godoy Ladeira diz ter sentido, naquele momento, de modo vivo, duro, não apenas intelectual, o que é ser um povo pobre, dependente, dominado por outro poder econômico, outra cultura. E formula a pergunta crucial, fadada a não ser respondida nem a curto nem a médio prazo (um otimismo malsão poderá presumir que, algum dia, certamente, poderá  vir a sê-lo) ainda que atormente a algum ser pensante do Continente: Nós os sul-americanos, continente algemado, terceiro mundo, a classe que entra e oferece bugigangas para sobreviver, ainda agora, sempre o mesmo, por tantos séculos, todos trocando alguma coisa por pedaços de espelho, miçangas, dólares, sempre, até quando?

 

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