Sob
a rubrica “Memória Sul-Riograndense”, que abriga várias obras de imenso
interesse para o conhecimento da História do Estado, a Universidade Federal de
Santa Maria publicou, em 1997, Santa Maria. Relatos e impressões de viagem, volume
comemorativo ao bicentenário de fundação da cidade. Reunidos por José Cardoso
Marchiori e Valter Antonio Noal Filho os textos (em ordem cronológica e antecedidos
de uma nota biobibliográfica e de um breve comentário sobre o autor) e as
ilustrações se completam num precioso testemunho que tem início nas palavras do
Dr. José de Saldanha. Ele esteve Santa Maria entre 1786 e 1787, registrando num
diário as atividades que desenvolveu como geógrafo e astrônomo das duas
primeiras Partidas Demarcadoras no Rio Grande do Sul, assim como informações
que se tornariam uma valiosa contribuição
etnográfica zoológica e histórica.
Suas referências a Santa Maria são as mais antigas que se conhecem. Seguem-lhe
as de Auguste Saint-Hilaire e a de muitos outros entre os quais alemães,
italianos e franceses que se detiveram em aspectos religiosos, comerciais,
urbanísticos, históricos, geográficos e econômicos que, juntamente com um olhar
para a paisagem, para o casario e um fixar-se nos costumes vão revelando a
cidade no enumerar dos fatos e no testemunho das vivências.
Se dados e
cifras e registros importam para acompanhar a trajetória da cidade desde esse
ano de 1797 quando o acampamento militar, ocupando terreno do Padre Ambrósio
José de Freitas levanta seus ranchos e um pequeno oratório no topo da colina,
tornando-se o evento definitivo para a fundação de Santa Maria, até esse
melancólico período de crise em que – interrompidos os filões que determinavam o
seu progresso – curvou-se à necessidade de buscar outros caminhos. Não
menos ricos são os depoimentos sobre seus contornos e seu modo de viver.
Aprazível, situada em meio de vales e desfiladeiros, com seus arredores encantadores, sua magnífica floresta e seus campos a se
estenderem longe. Uns e outros com flores
radiantes, purpurinas e matizes de flores
agrestes. Na menção às casas, impondo-se
a simplicidade: são de madeira e
rebocadas de argila, têm um pequeno jardim e, nos fundos, um laranjal. Diz
um cronista ver um telhado rosa, um pouco levantado
e saliente, fazendo sobressair a brancura dos muros. E outro, depois de
contornar uma pequena floresta, no sopé da serra, depara com a cidade e a
define como um lindo ninho de casas brancas com telhados vermelhos. Também
houve os que se detiveram em algum de seus costumes e na qualidade que parece
ser própria dos rio-grandenses-do-sul. Mencionado, como exceção, o cultivo do
linho, fiado e tecido para a confecção de toalhas de mesa e de rosto que duas
senhoras fazem apenas por distração. Como algo de habitual, os jovens de origem
alemã que noite alta e de luar, em véspera de domingo de Ramos passam pela
cidade, tocando seus instrumentos. E, muito especial, o jeito que têm os
campeiros de indicar distâncias, sempre bem menores do que realmente são.
Talvez porque habituados a percorrer grandes distâncias, originando a expressão
légua de beiço por ser costume indicar
as distâncias com uma ligeira contração da boca. E há os que dão conta da
hospitalidade dos gaúchos, tida por
proverbial. Um cronista confessa que não sabia ser ela tão ampla. E outro,
diz que os habitantes das povoações da
campanha são hospitaleiros afáveis e francos,
como essa vasta e devassada região varrida e purificada, de vez em quando,
pelos vendavais do pampeiro e a chuva
semidiluviana e que na cidade de
Santa Maria, então como simples
freguesia, essa hospitalidade deixaria o viajante mais sinceramente penhorado.
Raras
vezes, nesses escritos, aparecem observações negativas. Fernando Callage que
nasceu em Santa Maria e foi viver em São Paulo, quando voltou, anos depois,
pode vê-la com olhos de forasteiro, mas, alimentado de lembranças. Observa o
que na cidade perdurou – o hábito do passeio na praça e as intriguinhas dos grupelhos
políticos. E o que nela houve de progresso, visível nas ruas, nas praças, na
arquitetura e que a deixou leve, de gosto
mais fino e apurado. Sobretudo, se entusiasmou pela Escola de Artes e
Oficios da Cooperativa de Consumo. Elogia sua organização teórica do ensino, sabiamente elaborada até a aprendizagem,
sabiamente prática, profissional, adquirida nas várias seções: fundição,
modelagem, ajustadores, ferraria, artefatos de cobre, marcenaria, carpintaria, tornearia, estofaria. Um ensino, oferecido
aos filhos dos operários da Viação Férrea que, ali, não somente aprendem um
ofício e um curso elementar, mas recebem roupa,
alimentação, médicos, farmácias e gabinete dentário sob a orientação dos maristas no que respeita aos meninos e de
freiras no que respeita às meninas que ali aprendem trabalhos manuais. O
estabelecimento prima pela limpeza e
higiene e se constitui uma obra
notável que proporcionará, diz o cronista, magníficos resultados para o país.
Dez
anos depois, em 1940, outro santa-mariense, se refere, também, à Escola de Arte
e Ofícios, como uma das primeiras da América do Sul, onde lecionam professores
nacionais e estrangeiros. Menciona que nas oficinas da Viação Férrea do Estado,
instaladas em Santa Maria, trabalham, na época, mais de mil operários,
fabricando os mais complexos e variados
apetrechos necessários ao material
rodante e às instalações da grande ferrovia gaúcha, inclusive carros de passageiros, dotados com todo o conforto, segurança e luxo. No
mesmo ano, Wolfgang Hoffmann Harnisch percorreu o Rio Grande do Sul e no seu
livro, O Rio Grande do Sul - A Terra e o Homem, um dos
mais importantes relatos de viagem sobre o estado, diz que na Escola de Artes e
Ofícios estudam setecentos alunos do sexo masculino e mais de mil do sexo
feminino.
Inestimáveis
informações oferecidas a expressivo número de alunos, aliadas à possíveis
oportunidades de trabalho revelam a importância da iniciativa de Manuel Ribas e
de seu irmão Augusto.Uma iniciativa que deveria se multiplicar, atendendo
necessidades locais ou regionais de todo o país. Ofereceria uma formação rápida
e possibilidades de trabalho a uma infinidade de jovens que, respeitados como
técnicos, não encarariam como única solução para se profissionalizar o curso superior
insuficientemente oferecido pela rede pública de ensino. No entanto, não
apenas, deixou de ser mantida, em Santa Maria, como a sua idealização não
originou seguidores. O que, num país carente – salvo para as elites que suprem
as deficiências usufruindo os benefícios encontrados em países do Primeiro
Mundo – de praticamente tudo o que é necessário para o bem-estar de sua
população, é extremamente lamentável, pois, com certeza, está negando caminhos
que conduziriam às prementes e imprescindíveis opções de trabalho.Trabalho que,
certamente, irá minimizar a pobreza e a
exclusão social que, desde sempre, campeia pelo país afora.

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