domingo, 8 de fevereiro de 2004

Caminhos negados


            Sob a rubrica “Memória Sul-Riograndense”, que abriga várias obras de imenso interesse para o conhecimento da História do Estado, a Universidade Federal de Santa Maria publicou, em 1997, Santa Maria. Relatos e impressões de viagem, volume comemorativo ao bicentenário de fundação da cidade. Reunidos por José Cardoso Marchiori e Valter Antonio Noal Filho os textos (em ordem cronológica e antecedidos de uma nota biobibliográfica e de um breve comentário sobre o autor) e as ilustrações se completam num precioso testemunho que tem início nas palavras do Dr. José de Saldanha. Ele esteve Santa Maria entre 1786 e 1787, registrando num diário as atividades que desenvolveu como geógrafo e astrônomo das duas primeiras Partidas Demarcadoras no Rio Grande do Sul, assim como informações que se tornariam uma valiosa contribuição etnográfica zoológica e histórica. Suas referências a Santa Maria são as mais antigas que se conhecem. Seguem-lhe as de Auguste Saint-Hilaire e a de muitos outros entre os quais alemães, italianos e franceses que se detiveram em aspectos religiosos, comerciais, urbanísticos, históricos, geográficos e econômicos que, juntamente com um olhar para a paisagem, para o casario e um fixar-se nos costumes vão revelando a cidade no enumerar dos fatos e no testemunho das vivências.

Se dados e cifras e registros importam para acompanhar a trajetória da cidade desde esse ano de 1797 quando o acampamento militar, ocupando terreno do Padre Ambrósio José de Freitas levanta seus ranchos e um pequeno oratório no topo da colina, tornando-se o evento definitivo para a fundação de Santa Maria, até esse melancólico período de crise em que – interrompidos os filões que determinavam o seu progresso – curvou-se à necessidade de buscar outros caminhos. Não menos ricos são os depoimentos sobre seus contornos e seu modo de viver. Aprazível, situada em meio de vales e desfiladeiros, com seus arredores encantadores, sua magnífica floresta e seus campos a se estenderem longe. Uns e outros com flores radiantes, purpurinas e matizes de flores agrestes. Na menção às casas, impondo-se a simplicidade: são de madeira e rebocadas de argila, têm um pequeno jardim e, nos fundos, um laranjal. Diz um cronista ver um telhado rosa, um pouco levantado e saliente, fazendo sobressair a brancura dos muros. E outro, depois de contornar uma pequena floresta, no sopé da serra, depara com a cidade e a define como um lindo ninho de casas brancas com telhados vermelhos. Também houve os que se detiveram em algum de seus costumes e na qualidade que parece ser própria dos rio-grandenses-do-sul. Mencionado, como exceção, o cultivo do linho, fiado e tecido para a confecção de toalhas de mesa e de rosto que duas senhoras fazem apenas por distração. Como algo de habitual, os jovens de origem alemã que noite alta e de luar, em véspera de domingo de Ramos passam pela cidade, tocando seus instrumentos. E, muito especial, o jeito que têm os campeiros de indicar distâncias, sempre bem menores do que realmente são. Talvez porque habituados a percorrer grandes distâncias, originando a expressão légua de beiço por ser costume indicar as distâncias com uma ligeira contração da boca. E há os que dão conta da hospitalidade dos gaúchos, tida por proverbial. Um cronista confessa que não sabia ser ela tão ampla. E outro, diz que os habitantes das povoações da campanha são hospitaleiros afáveis e francos, como essa vasta e devassada região varrida e purificada, de vez em quando, pelos vendavais do pampeiro e a chuva semidiluviana e que na cidade de Santa Maria, então como simples freguesia, essa hospitalidade deixaria o viajante mais sinceramente penhorado.

            Raras vezes, nesses escritos, aparecem observações negativas. Fernando Callage que nasceu em Santa Maria e foi viver em São Paulo, quando voltou, anos depois, pode vê-la com olhos de forasteiro, mas, alimentado de lembranças. Observa o que na cidade perdurou – o hábito do passeio na praça e as intriguinhas dos grupelhos políticos. E o que nela houve de progresso, visível nas ruas, nas praças, na arquitetura e que a deixou leve, de gosto mais fino e apurado. Sobretudo, se entusiasmou pela Escola de Artes e Oficios da Cooperativa de Consumo. Elogia sua organização teórica do ensino, sabiamente elaborada até a aprendizagem, sabiamente prática, profissional, adquirida nas várias seções: fundição, modelagem, ajustadores, ferraria, artefatos de cobre, marcenaria, carpintaria, tornearia, estofaria. Um ensino, oferecido aos filhos dos operários da Viação Férrea que, ali, não somente aprendem um ofício e um curso elementar, mas recebem roupa, alimentação, médicos, farmácias e gabinete dentário sob a orientação dos  maristas no que respeita aos meninos e de freiras no que respeita às meninas que ali aprendem trabalhos manuais. O estabelecimento prima pela limpeza e higiene e se constitui  uma obra notável que proporcionará, diz o cronista, magníficos resultados para o país.

            Dez anos depois, em 1940, outro santa-mariense, se refere, também, à Escola de Arte e Ofícios, como uma das primeiras da América do Sul, onde lecionam professores nacionais e estrangeiros. Menciona que nas oficinas da Viação Férrea do Estado, instaladas em Santa Maria, trabalham, na época, mais de mil operários, fabricando os mais complexos e variados apetrechos necessários ao material rodante e às instalações da grande ferrovia gaúcha, inclusive carros de passageiros, dotados com todo o conforto, segurança e luxo. No mesmo ano, Wolfgang Hoffmann Harnisch percorreu o Rio Grande do Sul e no seu livro, O Rio Grande do Sul - A Terra e o Homem, um dos mais importantes relatos de viagem sobre o estado, diz que na Escola de Artes e Ofícios estudam setecentos alunos do sexo masculino e mais de mil do sexo feminino.

            Inestimáveis informações oferecidas a expressivo número de alunos, aliadas à possíveis oportunidades de trabalho revelam a importância da iniciativa de Manuel Ribas e de seu irmão Augusto.Uma iniciativa que deveria se multiplicar, atendendo necessidades locais ou regionais de todo o país. Ofereceria uma formação rápida e possibilidades de trabalho a uma infinidade de jovens que, respeitados como técnicos, não encarariam como única solução para se profissionalizar o curso superior insuficientemente oferecido pela rede pública de ensino. No entanto, não apenas, deixou de ser mantida, em Santa Maria, como a sua idealização não originou seguidores. O que, num país carente – salvo para as elites que suprem as deficiências usufruindo os benefícios encontrados em países do Primeiro Mundo – de praticamente tudo o que é necessário para o bem-estar de sua população, é extremamente lamentável, pois, com certeza, está negando caminhos que conduziriam às prementes e imprescindíveis opções de trabalho.Trabalho que, certamente,  irá minimizar a pobreza e a exclusão social que, desde sempre, campeia pelo país afora.

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