domingo, 22 de fevereiro de 2004

O louco do Cati : a força da simplicidade. 1


Em setembro do ano passado, pela Editora Planeta do Brasil, torna a ser publicado O Louco do Cati. Quinta edição, consta na sua folha de rosto, sendo, porém, as anteriores, de outras editoras: da Globo, de Porto Alegre, a de março de 1942, a primeira; a segunda, de 1979, da Vertente de São Paulo e a terceira e a quarta (1981 e 1984), da editora Ática, também de São Paulo. Como um aporte surpreendente, no verso da capa o mapa, feito por Dyonélio Machado, do itinerário de seu personagem na aventurosa viagem que fez de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e da sua volta aos campos da fronteira do Rio Grande do Sul. Um desenho que mostra a cuidadosa estrutura da narrativa, cuja espontaneidade, feita de um tom coloquial, da maestria dos diálogos, da expressividade dos sinais de pontuação, do vocabulário escorreito, da breve presença das figuras que, num sábio uso, deixam ver esse narrador maior que foi Dyonélio Machado.

            Em reduzido número, diluídos ao longo do texto, os recursos estilísticos em O Louco do Cati estão em acorde com a sobriedade da escrita que o norteia. Assim, as comparações.

            Tendo como primeiro elemento o personagem central do relato, as comparações lhe determinam o olhar, que dois adjetivos, sonhadores e profundo, qualificam como diante de um horizonte infinito; as orelhas que as asas do chapéu dobram para fora, como duas asas; o estado de espírito, nervoso como um pequeno animal contido; o sono pesado como uma pedra, o cansaço que o faz entregar-se como uma criança; o rosto quieto como tem a criança quando as mães lhes experimentam roupas. Referindo-se aos companheiros de viagem, dos quais se separa, quando voltam para Porto Alegre e ele continua a viagem, a narrativa diz que eram vistos desaparecendo nas dobras oblíquas dos cômoros, como através uns bastidores. E mais adiante, já presos, viajando no navio para o Rio de Janeiro, Norberto, que o leva junto, se lembra dos companheiros e o texto se repete: via-os desaparecendo atrás dos cômoros como através uns bastidores numa descrição que se completa: Já pareciam transparentes, vagos como espectros.... E a palavra espectro irá aparecer em outra comparação. Na seqüência em que o personagem chega ao hotel com os outros presos, também liberados, o gerente lhes pergunta a procedência e ele vai mencionar a Casa de Detenção que ainda o assombrava como um espectro que nos intimida, nos prende na sua volúpia.

 Em relação ao segundo elemento, algumas vezes, as comparações se atém às atitudes relacionadas às crianças: um olhar de susto como têm as crianças pegadas em flagrante; um sorriso de animação como se faz com as crianças que se acompanha até o bonde; o à vontade com que uma das personagens resolve uma situação, como uma pessoa grande, ajeitando diferenças entre duas crianças.

            Existem, ainda, os casos das comparações em que tanto o primeiro elemento quanto o segundo, se constitui de seres inanimados. A areia batida e úmida tão lisa como asfalto, as abas do casaco que o vento abana como duas bandeirinhas, o chapéu com sua copa alta, fendida bem no centro, como um desses pães que antes de ir ao forno as donas de casa entalham com um gesto fácil e profissional de bordo de mão. Como esta última, igualmente, mais elaborada, a comparação na seqüência em que é descrita uma parte do presídio. O primeiro elemento da comparação, numa frase e o segundo, na frase seguinte, iniciada com o advérbio: À sua esquerda, na parte que dava pra uma das ruas, corria um enorme muro de proteção. Como a muralha duma posição fortificada,

– picotado de ameias, interrompido de trecho em trecho por pequenas casamatas, onde se divisava, àquela hora sombria, um perfil escuro com o seu fuzil, guardando a cidadela. 
Nem pelo seu número, assaz pequeno, nem pela sua inventividade, assaz modesta, essas comparações, de per si, não se oferecem, no texto de O Louco do Cati, como um traço marcante.  No entanto, irão se valorizar no conjunto feito de outros recursos estilísticos, igualmente parcos, igualmente discretos, para fazer parte desse todo cuja eloqüência estará, sobretudo, na simplicidade.
 

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