[...] conversa longa, evocativa e descansada,
[...] muralha entrançada, conglomerada,
confundida, são expressões, nesse uso
de três adjetivos, dedicados a um substantivo, não muito freqüentes no romance
de Dyonélio Machado O Louco do Cati, que a Planeta do Brasil editou no
final do ano passado e que, haja vista as quatro edições anteriores, é a quinta
desde que foi publicado, pela Globo de Porto Alegre, em 1942 e, mais tarde,
pela Vertente e pela Ática, ambas de São Paulo.
Na verdade,
uma verdadeira obra prima da ficção brasileira, tão sabiamente construída, que
mal deixa perceber os recursos narrativos e formais de que é feita.
Considerando-se, por exemplo, a presença do adjetivo – segundo Raúl H.
Castagnino, um dos elementos individualizadores no estilo – nas suas páginas,
fica evidente que Dyonélio Machado o sabe usar como se tivesse aprendido nos Aforismos
a un escritor novel de Azorín (José Martinez Ruiz) a escrever sem ele.
Porque, em O Louco do Cati, além desse uso corrente e
imprescindível do qual os mais irredutíveis inimigos do adjetivo não conseguem escapar
– nem o próprio Azorín o conseguiu – a
sua presença é parcimoniosa tanto quanto ao número como, sobretudo, quanto às
combinações entre adjetivo e substantivo .Combinações estas que Ernesto Guerra
Da Cal, ao estudar o estilo de Eça de Queiroz, chama de “aliança desusada. É a que não obedece à rígida aliança lógica de
dois termos independentes, claros e
unívocos, cujos motivos e laços de união são evidentes e previsíveis.
Fugindo à junção de substantivo e adjetivo por caminhos já palmilhados e
permitidos pelas normas, encontram-se em O Louco do Cati : gesto apocalíptico (o do personagem
central que, assustado no clarear da manhã, aponta para a silhueta da
construção do hotel e suas dependências, relacionando-as com as lembranças do
que lhe fizera medo na infância; ou segredo
espantado que não é dado a conhecer ao leitor, pois a mulher do dono do
caminhão que leva o louco do Cati para Lages e o hospeda na sua casa, lhe diz
ao ouvido, depois de ter dele escutado as coisas que sabia sobre o Cati, as torturas, as perseguições, os
degolamentos que nesse lugar aziago eram cometidas; cabeça meditativa que o
cobrador do bonde abana, movido por seus pensamentos onde se misturam a
melancolia e a tolerância diante das situações que no seu trabalho diário deve
enfrentar; olhar oblíquo, clandestino lançado pelo louco do Cati, em direção às
sombras que, no campo, onde caminha sozinho, se juntam em volta dos moirões. E,
ainda: sinistra segurança, fúria boa, sofreguidão serena e irracional”. Em alguns casos – muito poucos –
o substantivo abstrato é determinado por um adjetivo que lhe confere uma
qualidade, usualmente atribuída a seres humanos: mistério gaiato, curiosidade
serena, lisonja amável, pensamentos melancólicos. Noutros, são
dois adjetivos que determinam um substantivo e a ele aparecem pospostos: nuvem branca, lenta, movimento lento e cadenciado, opinião prudente e conciliadora, atitude serena e familiar, areias alvas e onduladas, incompreensão
ingênua e irônica, ressentimento
antigo e profissional.
E,
vez por outra, pontilhando o texto, em variadas combinações, enriquecidas pela
presença de advérbios que lhes modificam o sentido: entre eles, o uso de dois
adjetivos intercalados por um advérbio de intensidade (jeito insinuante, muito brando); ou, comparativo (as orelhas mais dobradas, mais abaixadas); ou, de lugar, antecedendo dois adjetivos
(a voz do praieiro, lá na ponta, aflautada, explicativa); ou, ainda, de
tempo, também a anteceder dois adjetivos (“trotava
num tranco que, agora, era ligeiro e
ladeado).
Também,
o emprego de dois adjetivos completados por um adjunto adnominal (pedras arredondadas e alisadas pela ação da água); de um adjetivo aplicado
a um substantivo a contrastar com outro, aplicado a outro substantivo (seu dedo branco fazia um contraste contra o
verde turvo daquele líquido espesso).
E, rara a presença de vários adjetivos a se relacionarem com o mesmo
substantivo como ocorre na seqüência em que o louco do Cati, assustado, corre
para o matinho: matinho mirrado, todo
retorcido pelo vento cortante do mar. Limitado no princípio e no fim por
dois asteriscos, segue-se a essa seqüência, um diálogo para, só então, se
completar a descrição do matinho, em que os adjetivos são modificados por advérbios
(um deles pleonástico): quase
impenetrável de tão reduzido em altura, de tão raquíticos que eram seus
arbustos, de tão tramado.
Enumerar
exemplos da presença de adjetivos em O Louco do Cati, certamente
reafirma esta peculiar qualidade textual de Dyonélio Machado que se mostra na
dosagem precisa – quer pela moderação, quer pelo que possui de sugestivo – dos
elementos que irão construir o seu mundo narrativo. Belo, despojado,
enigmático. Profundo. Onde parece não haver lugar para o desnecessário e para o
supérfluo.
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