domingo, 14 de dezembro de 2003

Mantônia

            Mantônia. Maria Antonia de Oliveira. Porque era assim que as crianças a chamavam. As crianças que ela criou e que não mais existem, cresceram, se transformando em adultos. Mantônia, minha pajem há quantos anos atrás?, se pergunta a narradora do romance de Julieta Godoy de Ladeira, Entre lobo e cão (Rio de Janeiro, José Olympio, 1971), entre outras perguntas, a buscar verdades. Cortou as amarras, deixando a família, e sua paisagem para viver longe e de maneira diversa. O que não a fez alcançar a maturidade e sim a deixou à mercê da tristeza, da solidão, da nostalgia do passado. Na mediocridade de seus dias sem rumo, se insinuam as lembranças e a menina, a adolescente, a recém-casada emergem do relato que avança e retrocede numa hábil combinação do que já passou com o que está a se passar. Entre as figuras que povoam o seu passado, Mantônia. Ela era o prato de comida, o doce, o sono e a espera, era o quarto, o jardim a casa, a infância.


            Presença que lhe aparece em breves imagens fugidias: Mantônia, chamando as crianças na hora do jantar, indo para a fila do pão ou do açúcar, decretando que a água fria fazia mal, banana com leite também. Mantônia, oferecendo os pastéis vendidos pelo italiano que as mães negavam; a imitar, paciente, o lobo, com o xale da avó, repetindo, sempre, a mesma história porque, outra, as crianças não queriam; atravessando, da porta ao altar, de joelhos, a igreja de Pirapora, a segurar uma vela da altura da narradora nos seus onze anos, para que ficasse curada do ouvido; dando-lhe, escondida atrás da porta de serviço, com a sua mão escura, um dinheiro de presente de casamento (É só uma lembrança, não repare. Que Nossa Senhora e o Sagrado Coração protejam você).  Ou na expressão de profundo, insubstituível, afeto enraizado nas emoções primeiras: depois dos braços roliços de Mantônia, nos primeiros anos, conheci poucos aconchegos, Mantônia e seu cheiro de leite. Mantônia, lugar de repouso, companhia certa quando, através da vidraça, esperava a mãe chegar. No presente, o desejo de se subtrair ao sofrimento de a encontrar diferente, magra, fraca, pisando mal, a voz dificultada pela boca torta de quem sofreu um derrame, sem o controle das mãos a segurar, com gestos estranhos, a xícara. A xícara que é prato para a sopa, terrina para o café, caneca para o leite. E, se mostra incapaz de esquecer essas palavras de Mantônia que expressam não apenas uma visão de mundo, mas a aceitação de um destino. Eu servi, diz Mantônia ao mencionar as crianças de que cuidou. Eu servi, responde quando lhe é perguntado o que fez durante a vida inteira. E sem o saber, inserindo-se no universo daqueles que da vida somente recebem deveres e trabalhos – alijados dos mínimos direitos, inclusive daquele de poder dispor de si mesmo – diante de outra pergunta, A senhora gostaria de ter feito alguma outra coisa além de apenas servir, laconicamente responde: Eu nunca pude escolher. E de outra feita: Nunca me ensinaram, nunca me disseram. No entanto, pensava em coisas bem simples, jogando no bicho, acreditando que um dia pegaria uma centena para ter um canto seu. Pequeno, onde coubessem uma cama e o oratório e, nos fundos, tivesse um pouco de terra para plantar couve, regar depois do sol, olhar de manhã cedo. Sempre esperando pela sorte grande, embora jamais comprasse um bilhete. Porque nunca teve dinheiro e nunca pode comprar o que era novo. Só uma vez, um casaco escuro, a prestação e que durou anos. Ganhava menos do que as outras empregadas, pois Era como se fosse da família, ajudara a cuidar das meninas. Se não quisessem ajudá-la, depois de velha e doente, ficaria na rua, como acontece a tantas que passaram a vida servindo.
            Velha, doente, fraca, respirando com esforço – arteriosclerose, reumatismo, pressão alta – fica sentada perto do armário da cozinha. Chora ao ganhar um presente, receber uma gentileza.
            No hospital, inconsciente por ter se excedido nos calmantes, a narradora ainda pergunta: Mantônia. Você está aí?.

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