domingo, 9 de novembro de 2003

Paisagem


            Densidade dramática no contínuo trato que deve ter Bernardo Vieira Cedro com o mundo medíocre e desprezível que o rodeia – luta ferrenha entre o se manter digno e norteado por princípios e o ceder à oferta de ganhos fáceis. Inusitado e profundo lirismo. Romance feito de trama simples – conflito entre o que tem posses e, conseqüentemente, poder e o desprovido de bens, mas cioso de uma absoluta integridade – que se enriquece nos embates travados por Bernardo consigo mesmo.

            O fiel e a pedra, publicado em 1961, na opinião de Massaud Moisés, expressa no texto que antecede o romance (edição da Summus, 1979) é, na trajetória de Osman Lins, um autêntico divisor de águas entre suas primeiras obras, O Visitante (1955) e Os gestos (1957) e as que mais tarde se lhe seguiram Nove, novena (1966) e Avalovara (1973). E nas palavras de quem, na mesma edição, lhe tece breve comentário, a observação de que, nesse romance, surgem descrições de ambientes exteriores não encontradas nos que o precederam.

 Na verdade, rápidas descrições da paisagem se inserem no relato. Repetidas vezes, se trata de um breve traço do narrador. Ao entrarem na cidade, Bernardo e sua mulher Teresa atravessam um parque de diversões: um vento agitava de leve as flâmulas de cor e por cima das barracas fechadas, dos carrosséis parados e desertos, a velha acácia floria contra o céu azul, os ramos cor-de-rosa pareciam cantar! Noutros, também um fixar-se no céu: o que se desanuvia depois da chuva, deixando brilhar as estrelas que, logo, dão lugar ao nascimento da manhã; o céu que, ainda, noturno, já se mostra de um azul mais frágil, mais polido e tênue, um azul vítreo. Igualmente fugaz, algo da paisagem em momentos que o personagem se dá conta do cenário que o rodeia. Teresa, pressentindo que, ao partir, sentiria saudades das verdes ondulações com suas claridades e sombras; Bernardo, olhando com desafogo a paisagem, os verdes tranquilos, o céu doce, o frio bueiro do engenho envolto numa luz dourada que se derramava sobre as telhas negras.

            Mas é, sobretudo, em dois recursos que se revela o domínio da narrativa que possui Osman Lins. Ao registrar as mudanças que ocorrem na paisagem – luz, movimentos, sons, cores, formas – o que aparece repetidas vezes, entrelaçado à percepção de Bernardo e de Teresa. Numa seqüência, Bernardo se lembra de uma tarde em que se sentiu calmo, em paz com seu destino: então, o animal em que montava bebia, balançando a cauda, as libélulas voavam, um casal de canários pousara nos arbustos e depois, voara, desaparecendo, cigarras cantavam e uma nuvem passara, mudara a cor das águas, avançara devagar, túrgida por um vento alto. Em outra, é Teresa que percebe as transformações pelas quais passa – ou segundo as horas ou segundo as épocas – a encosta próxima de sua casa e da certeza de que sempre a lembraria, cheia de névoa e tristeza nas manhãs de inverno, brilhante após a chuva, radiosa quando o sol nascia e tão bela nas tardes claras quando as sombras dos eucaliptos desciam lentamente a colina [...]. Pouco adiante, o narrador menciona a nuvem grande e cheia de vagar que passa diante do sol, o efêmero pousar de canários num ramo e o seu partir célere, duas setas amarelas afugentadas [...] e a emoção de Teresa quando, livre da nuvem, a luz voltou e ela viu as rosas: uma nascia e outra parecia cantar, as pétalas vermelhas desdobradas, tão farta em sua glória que o frágil caule pendia. Nas duas seqüências, diante do cenário feito de transitórias luzes e transitórias sombras, os personagens, repentinamente, têm consciência da felicidade plena que os invade e da tristeza que, imediata, irrompe para negar essa felicidade. Para Bernardo, uma faca a feri-lo no júbilo nascente, com tal violência e tanta rapidez, que a alegria ficara na ponta da lâmina, ainda viva, perdurável após o golpe. Para Teresa, ao olhar as rosas, o mundo esplendeu e ela sentiu-se também cheia de luz e alegre, soerguida numa onda muda que a houvesse arrebatado. Foi só um momento.

            E, muito hábil, a presença da paisagem, quando cenário para os atos dos homens e, principalmente, com a função de quebrar o ritmo da narrativa nos seus momentos de maior tensão. Como nas páginas finais do romance quando se enfrentam Bernardo Vieira Cedro e seu inimigo Nestor Benício para fazer o balanço na casa de comércio da qual era proprietário. Um diálogo difícil nas suas frases pequenas e incisivas se estabelece entre eles e, num crescendo, caminha para uma incontornável violência. Nestor Benício insiste na busca de uma definição, face as suas propostas inescrupulosas e deve, diante do silêncio do interlocutor, repetir o que dissera. Entre as duas interrogações, uma seqüência descritiva interrompe o fluir da ação: Cresciam as sombras. O claro chão do alpendre e o chão do pátio, verdes remotos, tudo se fechava, tendia para um negror de portas velhas. Na paisagem, como que nublada, naquela mútua infiltração e cores, terra e folhagem entretecendo-se, começando a fundir-se no tom pesado e baço do anoitecer, os homens quase imóveis destacavam-se, revestidos de um esplendor que os fazia mais sinistros, a luz em torno deles, lembrando esse fulgor mortal com que, em certos dias de chuva, um sol oculto endurece as saliências das nuvens. Vinham as sombras, marcavam as pregas das roupas, cavidades, rugas: e ombros, zigomas, dorsos das mãos, tudo fulgia como um brilho frio de arranhões no chumbo. Mais adiante, outra vez a proposta inescrupulosa, depreciando a plantação que estava a ser vendida e, entre ela -Dou duzentos! e a resposta -Por duzentos, prefiro não vender [...], a menção ao vento que agita a paisagem e que tendo passado a deixa imóvel: Na tarde de verão, houve como um ríspido vento de agosto, que agitou o bamburral, as árvores distantes, as bananeiras no córrego, o alpendre, deslizou pesado sobre as telhas. Um turbilhão de flocos voou das barrigudas gêmeas, girou suavemente em torno dos capangas. Passado o vento, a tarde pareceu mais dura e iníqua. Longe, contra o céu rosado, erguiam-se as mangueiras imóveis e nem as folhas dos bambus fremiam. Um mundo inteiriçado.

            Como que um paralelo com a ação que, na paisagem, se estava a incrustar: algo de violento e de passageiro antes de um retorno à imobilidade. Porém, o mundo dos homens não desfruta de lógicas nem de harmonias. Osman Lins, no desejo de esperanças, permitiu que, no seu relato, o degladiar-se, na certeza de bons motivos, tivesse algo de luminoso. Como luminosa foi a paisagem que os homens acompanhou.

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