domingo, 16 de novembro de 2003

Outra paisagem

            Havia terminado de escrever O fiel e a pedra e embarca para a Europa, como bolsista da Aliança Francesa, para uma permanência de seis meses que, mais tarde, afirmaria ter lhe sido marcante e, então, o assunto de Marinheiro de primeira viagem. Um livro que Osman Lins escreveu para se libertar das lembranças, fazer com que aquela pausa e seu encantamento passassem a fazer parte do passado. Nele evitou as descrições que podem ser encontradas em guias turísticos ou em enciclopédias e buscou fixar o transitório. Como disse numa entrevista, em 1963, quando o livro foi publicado: Do que não virá a repetir-se. E isto, o único, pode se constituir dos encontros que teve com Michel Butor, Robbe-Grillet, Jean Louis Barrault ou dos espetáculos de Edith Piaf, Juliette Greco, Edwige Feuillère, Léo Ferre que assistiu, de uma ou outra peripécia (dessas que soem acontecer aos turistas), das gravuras de Goya, dos quadros de Rousseau, do teatro de guignol, no Jardim de Luxemburgo, das estátuas de Rodin. E das notas sobre a paisagem.

            Na verdade, elas não são muitas. E, sempre, muito breves, apontando para o movimento, as cores e, por vezes, se entrelaçando às impressões do narrador. Este narrador que, no intuito de se poupar da intromissão do eu, diante de seus próprios olhos – assim o explica na mencionada entrevista a Esdras do Nascimento para A Tribuna do Rio de Janeiro – faz a narrativa na terceira pessoa. Mas, assim como a primeira pessoa do singular se permite, ainda que raramente, irromper no relato (acontece quando conta de suas andanças em busca do túmulo de Públio Virgílio Varo ou no texto em que sugere um certo restaurante de Amsterdam ou quando o narrador se torna presente ao empregar uma segunda pessoa plural, exigindo um interlocutor e, ainda, na seqüência em que o narrador concede voz à primeira pessoa), assim transparece, por momentos, embora disfarçada no outro, a presença desse eu que Osman Lins, por pudor (é a palavra que emprega) quer esconder.

            Em Capri, o vinho que bebe verte no seu coração, em grandes ondas, uma alegria que se derrama sobre a menina de tranças, os mastros dos navios, a fachada frutal da mercearia, a praia de pedrinhas, o reflexo do sol na proa dos veleiros, os peixes escondidos, as lâminas de sol no mar azul. E, espiam-no as casas de Sorrento, amontoadas umas sobre as outras, silenciosas, com as suas grandes arcadas senhoris. Fiel a sua determinação de fixar o passageiro, apenas uma expressão, uma curta frase lhe são suficientes para compor a imagem que deseja registrar. Ao viajar pela Holanda, as imagens se sucedem, muito rápidas e rápidas são as notas que originam: Roosendaal. Cortinas. Campos verdes, cisnes deslizando num lago, bois sob as macieiras. O primeiro moinho, rodeado de árvores como se lhes contasse uma história. Rotterdam, casas populares, panos coloridos nas janelas, secando ao sol, chaminés, guindastes, milhares de antenas de TV. Novamente o campo, outros moinhos. Delft, plantações em estufas, terraços com solenes frisos de cortinas, parecendo pálios. Haia, flores na estação, adeus, novas pastagens, Leiden, campos de tulipas amarelas, róseas, cor de laranja, canais, canais, Amsterdam. São impressões que se fixam no que não mais irá se repetir: cores, formas, detalhes, uma presença humana.

             Numa parede branca, os cachos de laranja cor de ouro; na paisagem, os campos verdes, as verdes planícies, um rio, os trigais, os girassóis, as flores cor de abóbora. Também, as cidades pardas sob a chuva, agudos campanários, casas de tijolo vermelho, telhados de ardósia, janelas brancas, vidraças esplendentes, cortinas rendadas. O mover-se de uma péniche, de alguém a vender rosas ou que, de mãos nos bolsos, olha o trem passar.

            Uma simplicidade no dizer que, vez ou outra, permite uma comparação: laranjas que pendem de pregos como de um altar pagão; por toda parte, em Volendam, gente de pincel na mão, pintando as esquadrias das casas. Como se o país fosse um navio. Ou, inesperadas combinações; gaivotas voando sobre um rebanho de ovelhas, vacas e bois deitados entre as tulipas, um cemitério no meio de uma plantação, vacas entre flores amarelas.

            Uma austeridade a cercear, sempre, as expansões da alma. Se expressas, deixam ver as sutilezas de um olhar para o mundo que percebe, como poucos, as nuanças do cenário que tem diante de si e o faz compreender, certa tarde, em Paris, que uma perspectiva, bela ao pôr do sol pode não o ser ao meio-dia, assim como as árvores desnudas pelo inverno podem revelar, em toda a sua elegância, um edifício em outras estações oculto pelo espessor da folhagem. E, também, que as mudanças, tão perfeitamente discerníveis – árvores nuas do inverno, árvores que reverdecem na primavera – anunciam o irreversível fluir do tempo. E o fluir do tempo nunca deixa de lhe estar presente – a alegria de pensar que, se quiser, poderá reter um pouco da manhã: estes barcos no rio, este casal sentado no café, o pombo que voou e foi pousar, suavemente, na torre de Saint Germain de Près – e, então, estar presente nos escritos que refazem seus dias na Europa. Que ele encerra num círculo ao fundir as primeiras impressões da viagem com as últimas para dar a impressão, ele explica, de que se trata de uma fase não inscrita no seguimento normal de sua vida.

            Fase que, passada, deixará lugar à vida por viver. Vida que o irá esperar do outro lado do Atlântico quando ele deixa para trás Paris, todas as suas lembranças para embarcar, assoviando, no avião que o leva de volta para casa.

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