Havia
terminado de escrever O fiel e a pedra e embarca para a Europa, como
bolsista da Aliança Francesa, para uma permanência de seis meses que, mais
tarde, afirmaria ter lhe sido marcante e, então, o assunto de Marinheiro de
primeira viagem. Um livro que Osman Lins escreveu para se libertar das
lembranças, fazer com que aquela pausa e
seu encantamento passassem a fazer parte do passado. Nele evitou as
descrições que podem ser encontradas em guias turísticos ou em enciclopédias e
buscou fixar o transitório. Como disse numa entrevista, em 1963, quando o livro
foi publicado: Do que não virá a
repetir-se. E isto, o único, pode se constituir dos encontros que teve com
Michel Butor, Robbe-Grillet, Jean Louis Barrault ou dos espetáculos de Edith
Piaf, Juliette Greco, Edwige Feuillère, Léo Ferre que assistiu, de uma ou outra
peripécia (dessas que soem acontecer aos turistas), das gravuras de Goya, dos
quadros de Rousseau, do teatro de guignol, no Jardim de Luxemburgo, das
estátuas de Rodin. E das notas sobre a paisagem.
Na
verdade, elas não são muitas. E, sempre, muito breves, apontando para o
movimento, as cores e, por vezes, se entrelaçando às impressões do narrador.
Este narrador que, no intuito de se poupar da intromissão do eu, diante
de seus próprios olhos – assim o explica na mencionada entrevista a Esdras do
Nascimento para A Tribuna do Rio de Janeiro – faz a narrativa na
terceira pessoa. Mas, assim como a primeira pessoa do singular se permite,
ainda que raramente, irromper no relato (acontece quando conta de suas andanças
em busca do túmulo de Públio Virgílio Varo ou no texto em que sugere um certo
restaurante de Amsterdam ou quando o narrador se torna presente ao empregar uma
segunda pessoa plural, exigindo um interlocutor e, ainda, na seqüência em que o
narrador concede voz à primeira pessoa), assim transparece, por momentos,
embora disfarçada no outro, a presença desse eu que Osman Lins, por
pudor (é a palavra que emprega) quer esconder.
Em
Capri, o vinho que bebe verte no seu
coração, em grandes ondas, uma alegria que se derrama sobre a menina de
tranças, os mastros dos navios, a fachada frutal da mercearia, a praia de
pedrinhas, o reflexo do sol na proa dos veleiros, os peixes escondidos, as
lâminas de sol no mar azul. E, espiam-no
as casas de Sorrento, amontoadas umas
sobre as outras, silenciosas, com as suas grandes arcadas senhoris. Fiel a sua determinação de fixar o
passageiro, apenas uma expressão, uma curta frase lhe são suficientes para
compor a imagem que deseja registrar. Ao viajar pela Holanda, as imagens se
sucedem, muito rápidas e rápidas são as notas que originam: Roosendaal. Cortinas. Campos verdes, cisnes
deslizando num lago, bois sob as macieiras. O primeiro moinho, rodeado de
árvores como se lhes contasse uma história. Rotterdam, casas populares, panos
coloridos nas janelas, secando ao sol, chaminés, guindastes, milhares de
antenas de TV. Novamente o campo, outros moinhos. Delft, plantações em estufas,
terraços com solenes frisos de cortinas, parecendo pálios. Haia, flores na
estação, adeus, novas pastagens, Leiden, campos de tulipas amarelas, róseas,
cor de laranja, canais, canais, Amsterdam. São impressões que se fixam no
que não mais irá se repetir: cores, formas, detalhes, uma presença humana.
Numa parede branca, os cachos de laranja cor
de ouro; na paisagem, os campos verdes, as verdes planícies, um rio, os
trigais, os girassóis, as flores cor de abóbora. Também, as cidades pardas sob
a chuva, agudos campanários, casas de tijolo vermelho, telhados de ardósia,
janelas brancas, vidraças esplendentes, cortinas rendadas. O mover-se de uma péniche,
de alguém a vender rosas ou que, de mãos nos bolsos, olha o trem passar.
Uma
simplicidade no dizer que, vez ou outra, permite uma comparação: laranjas que
pendem de pregos como de um altar pagão;
por toda parte, em Volendam, gente de
pincel na mão, pintando as esquadrias
das casas. Como se o país fosse um navio. Ou, inesperadas combinações; gaivotas voando sobre um rebanho de ovelhas,
vacas e bois deitados entre as tulipas, um
cemitério no meio de uma plantação,
vacas entre flores amarelas.
Uma
austeridade a cercear, sempre, as expansões da alma. Se expressas, deixam ver
as sutilezas de um olhar para o mundo que percebe, como poucos, as nuanças do
cenário que tem diante de si e o faz compreender, certa tarde, em Paris, que
uma perspectiva, bela ao pôr do sol pode
não o ser ao meio-dia, assim como as árvores desnudas pelo inverno podem
revelar, em toda a sua elegância, um edifício em outras estações oculto pelo
espessor da folhagem. E, também, que as mudanças, tão perfeitamente
discerníveis – árvores nuas do inverno, árvores que reverdecem na primavera –
anunciam o irreversível fluir do tempo. E o fluir do tempo nunca deixa de lhe
estar presente – a alegria de pensar que, se quiser, poderá reter um pouco da
manhã: estes barcos no rio, este casal sentado no café, o pombo que voou e foi
pousar, suavemente, na torre de Saint Germain de Près – e, então, estar presente nos escritos que refazem seus
dias na Europa. Que ele encerra num círculo ao fundir as primeiras impressões
da viagem com as últimas para dar a impressão, ele explica, de que se trata de
uma fase não inscrita no seguimento normal de sua vida.
Fase que,
passada, deixará lugar à vida por viver.
Vida que o irá esperar do outro lado do Atlântico quando ele deixa para trás
Paris, todas as suas lembranças para embarcar, assoviando, no avião que o leva
de volta para casa.
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