domingo, 19 de outubro de 2003

As invenções do dizer 3


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir das Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes .O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no  lugar. No relato, o uso das comparações cumpre o desígnio de reafirmar nos símiles a conturbada alma dos homens e os seus atos.

 

            Há o trajeto dos homens e seus animais, que se adentram no Continente em busca de bens antes nunca possuídos. E o caminho das paixões, percorrido na alma de cada um. E, assim emergem, profusamente ricos, no texto de El hombre que trasladaba las ciudades  os matizes  da afetividade nos quais se inscrevem as comparações. Disseminadas no romance, se constroem em seqüências que não apenas retratam o ser humano e o desvelam como, na sua diversidade, reafirmam a inconfundível habilidade estilística de Carlos Droguett. Tomadas a esmo ao longo das páginas do segundo capítulo, “El segundo traslado”, o exame de cinqüenta delas, introduzidas pelo comparativo como, revela que, muitas vezes, o primeiro elemento da comparação é um capitão, soldados,  padres ou índios.

            Nomeado, o capitão Guevara, Cortés e Pizarro e Anton de Luna. O capitão parecia mais tranquilo e mais despreocupado como o homem que faz uma coisa e pensa em outra. E Cortés e Pizarro, são aqueles que não conheceram, afirma Juan Núñez de Prado, estes tremores, este suave desejo de ser bom e sanguinário como uma necessidade, como uma fatalidade que te alimenta. Anton de Luna, já morto, é retirado da forca por um dos padres e levado até a cova recém cavada: rodou sobre si mesmo e caiu de frente como se estivesse embriagado demais[...]. Mencionado antes ou depois da sequência comparativa que, no entanto, a ele se refere, o padre Carvajal parecia muito cansado, lançando, agora, seu cansaço como uma febre feia, como uma desolação infinita que não lhe correspondia conservar.  Ou sentindo-se muito sozinho, caminhou até o quarto e dormitou com pressa e aquilo era como se recém viesse chegando, como se acabasse de descer do cavalo e cair desmaiado no chão [...].

            Referidos apenas como esses anônimos que se diluem no meio de tantos, os soldados e os índios. Entre eles, o soldado que não queria abandonar a cidade e agredido pelos outros que o empurraram, caminhou como bêbado, mas não estava bêbado, tinha sede, desejos de beber vinho e dormitar agora e esquecer os golpes[...]. Ou, os temerosos de sofrer demais, de não serem capazes de suportar um terrível sofrimento e como o selvagem no fundo da caverna ou a criança no fundo da escuridão, gritam para espantar seu temor [...]. E os índios escondidos nas madeiras e nas roupas olhavam com seus rostos inexpressivos como se formassem parte da solidão, como se os golpes que haviam despedaçado os troncos, afundados os tetos e os forros e espalhado as portas e as arcas os tivessem salpicado também [...].

            Nessa repetição que norteia a estrutura do romance e é presença constante na sua expressão lingüística, o segundo elemento da comparação traça perfis, estados de alma, sofrimentos. O que irá ocorrer, igualmente, nas seqüências em que o primeiro elemento é um animal cujo padecer, no entanto, é devido aos humanos: os bois arrastando as carretas à beira do abismo fugindo com os focinhos cheios de babas, os olhos exorbitados e tranqüilos como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte  e a desolação. O cão que pertencera a dois soldados assassinados dentro de casa por não aceitarem partir com a cidade, corria e voltava,  a uivar como se desculpando, como desejando acender esse curto uivo para iluminar seus amos.

Com exceção de estrelas, comparadas a pedregulhos sujos; das espadas nuas, feias, velhas, como se enrugando ao sol;  do ouro que brilhava e fugia sob a água como peixes; do sangue que brilhava ao sol como bandeira;  da cidade que crescia sem pressa como as árvores que rodeavam a praça;  do incêndio que tal como a água passa encima e limpa toda sujeira, em que ambos elementos são reais, em  outras comparações em que  o primeiro elemento designa seres inanimados, o segundo os vai humanizar: o sol no alto do céu como que olha para o capitão, como que adivinha o seu frio; as luzes se inclinavam para o outro lado como se tivessem desejado deixá-lo a sós, discutindo suas traições e suas tramóias com o padre Cedrón.

Enleando-se em pleonasmos, acrescentando-se adjetivos, mesclando uns e outros na busca do universo intrínseco desses homens que lhe povoam a ficção, Carlos Droguett  se renova sempre.Como um mago das palavras faz alguém evocar, nesse árido mundo das conquistas o feminino ausente e, então, esparso em nomes, não, porém na paixão que, num crescendo de brasa-braseiro- incêndio faz viver e nesse viver, se diluir: ai Juan, as noites mornas de primavera, as noites rangentes do verão quando o céu reluz como uma espaçosa brasa e a boca de Amparo ou Consuelo ou Assunção ou Rosário ou Claudia ou Marcela Paz está ardente e olhas para ela na treva luminosa, ves seu  colo, seu peito ardente como uma brasa, como um braseiro, como um incêndio alvo que te incorpora e te dissolve, Juan[...]      

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