Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las
ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz,
insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da
Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América,
a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan
Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile
que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três
vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se
iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros
trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez,
mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa, também, a de uma
expressão lingüística em que as combinações entre adjetivos e advérbios são surpreendentes
e inovadoras.
Carlos Droguett
quis, na ficção, contar a grande aventura que foi fundar uma cidade e mudar
quatro vezes o seu assento. O fato e os homens que o realizaram, ele os
conheceu em documentos históricos, cujos dados não falseia e se encontram, ao
longo do romance, inseridos num relato que deixa ver, nos seus meandros, a
apurada técnica em que a expressão é de um magistral conhecimento do fazer
literário.
Assim como Eça de
Queiroz, de quem foi um admirador, o seu
texto nesse romance se enriquece de uma desmedida abundância de adjetivos como
o demonstram os 2736 que usou nas cento e trinta e três páginas do primeiro
capítulo (a edição de 1973, da Noguer, tem um total de 418 páginas). Uma
presença, não somente quantitativa, mas grandemente marcada pela audácia, num
múltiplo uso de recursos, seja quanto a seu lugar na frase, seja quanto à
relação estabelecida com o substantivo a que se refere ou com outros elementos:
verbos, conjunções, advérbios.
Considerando-se,
apenas, os quase duzentos advérbios de modo (dos quais quarenta repetidos uma,
duas, três, quatro, cinco, oito, nove vezes) que aparecem no segundo capítulo,
“El segundo traslado”, é evidente que a sua presença obedece, modificando ou
reforçando, o que lhe é próprio: indicar como se realiza a ação do verbo, o que
explica o número de vezes com que alguns aparecem no texto: lentamente e
suavemente (oito vezes), certamente e simplesmente (cinco
vezes). Menos freqüente, os advérbios que acompanham os adjetivos. Ou nas
expressões que definem o sentir dos homens da conquista – subitamente
tristes, ligeiramente triste, verdadeiramente aterrorizado,
terrivelmente cansado, atrozmente cansado, profundamente
machucado, simplesmente doente, mortalmente sozinho, definitivamente
enfastiado, completamente sozinhos, abandonados ou despertos.
Ou, poucos, nas que mostram algo de um perfil: um rosto ligeiramente
avermelhado, umas fontes ligeiramente grisalhas, uma barba sinistramente
dura e enegrecida, um braço totalmente nu, branco e ligeiramente machucado;
de um cenário em que se movem os homens e os animais: as árvores cresciam
com renovada força espantosamente verdes e frondosas, um céu alto e
sereno, excessivamente limpo, um céu horrivelmente azul.
Cenário também, feito da cidade, completamente desfeita, do fosso
terrivelmente profundo que a defende, do seu respirar morno imensamente
fiel e confiante, de suas casas pacificamente
iluminadas na noite. E dos objetos que dela fazem parte: uma porta
violentamente nova, umas cadeiras incrivelmente despojadas,
desumanizadas, abandonadas, a alta torre da igreja, disforme,
frágil, comovedoramente feia ou ingênua. Além desse uso em que o advérbio
funciona duplamente, remetendo-se também ao substantivo, Carlos Droguett também
se ampara de outros recursos que jogam com sentidos díspares e são imensamente
ricos na expressão dos sucessos que são parte dessa história cruel e trágica em
que a mudança da cidade se revela como obra de seres fabulosamente práticos,
não de sonhadores, de homens de ação, não de lunáticos, pusilânimes,
loucos e acovardados, como um espaço em que se mostram soldados teatralmente
ensangüentados, mesas com os pés virados para cima grotescamente
desonestas, frades endemoniadamente teimosos, enforcados já estendidos se mostrando docemente
apegados na escuridão, a ela se incorporando parecendo limpamente tranqüilos.
Ardiloso emprego do advérbio que, também, freqüentemente, se entrelaça ao
pleonasmo – recurso sempre presente em El hombre que trasladaba las
ciudades.

No relato do Padre
Carvajal, que permaneceu na cidade quando da primeira mudança efetuada e se
fazer cargo dos mortos que retira da forca para enterrar, surge, inesperada,
uma seqüência que revela o luminoso de um momento lúgubre como o reverso de uma
medalha ou um jogo de luz e sombra: Subi outra vez [as escadas da forca] e
peguei Alonzo del Arco, não tive dificuldade alguma em atraí-lo na minha
direção, como se viesse a meu encontro, seu corpo estava brando e maleável,
muito leve e perfumado também, a flores frescas, flores vivas, dando a
impressão de haver estado estendido sobre elas, pois tinha o corpo molhado
até as costas, só os seus braços
pareciam excepcionalmente secos, demasiados secos, suspeitosamente secos.
Se no primeiro advérbio a sua relação com o adjetivo não se mostra inovadora,
nem o seu sentido causa dúvidas, ainda que posa parecer estranho, ou
inverossímil, apenas os braços estarem secos quando o corpo inteiro se
apresenta molhado, o segundo advérbio, com um significado que remete a uma
particularidade própria do ser humano, indica se tratar, o que foi expresso
pelo adjetivo, não somente apenas de uma exceção, mas de algo suspeito e que
não será esclarecido pelo personagem que enuncia a seqüência, ele mesmo incapaz
de entender o porquê de estar o corpo molhado e secos os braços.
Em outro momento
do relato, discutem a propósito das mortes determinadas pelos capitães, Juan
Núñez de Prado e o Padre Cedrón que, então, olha para o seu interlocutor com os
olhos muito abertos e fixos, completamente frios e desleais, nada cristãos nem
caridosos, tampouco zangados, olhos perfeitamente práticos e inteligentes e
sadios. Neste caso, os dois advérbios comuns, não se afastam de um uso
regido pelas normas e se valorizam na sua relação com o substantivo olhos, pelo número de
adjetivos que o qualificam.
O romance é o único meio de compreender a
História, diz Christiane Montalhetti, no seu livro Le Voyage, le monde et la
bibliothèque. Carlos Droguett, não somente faz compreender esses momentos da
Conquista da América, pelos ibéricos, em El hombre que trasladaba las
ciudades, como recria, no inventivo jogo de combinar palavras, um mundo pleno
de novos sentidos.
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