domingo, 28 de setembro de 2003

A América para alguns 2


Mexicanos, chilenos, centro-americanos, viviam nos bairros pobres despovoados que apareciam como fungos perto de São Francisco. Ali se ouvia, à noite, o palpitar das guitarras e as canções do continente moreno. Logo, essa abundância de estrangeiros, de ouro, de canções e de alegria suscitou a violência. Os norte-americanos formaram associações de guardas brancos que chegavam de noite sobre essas casas, incendiando, arrasando e matando. Pablo Neruda em Para nacer, he nacido.


            Os versos são de Pablo Neruda. A música, de seu compatriota Sergio Ortega: Fulgor y muerte de Joaquin Murieta, trinta e seis anos depois de sua estréia em 1967 é, outra vez, encenada em Santiago do Chile.
            Melodrama, ópera, pantomima, hesita Pablo Neruda. Ópera chilena, define o compositor. Drama, música, canto, teatro e orquestra?, se pergunta Sebastián Ferrada, ao escrever sobre a apresentação que se deu no Teatro Municipal, no passado mês de junho. Sem dúvida, um espetáculo muito especial. Pelas questões que faz surgir em relação ao personagem (Joaquín Murieta realmente existiu? Era um mexicano ou um chileno?); ao gênero musical a que pertence a obra (ópera, drama musical, cantata popular?); às dificuldades de montagem na qual participam (entre o coro, a orquestra, os cantores, o corpo técnico, os atores), mais de duzentas pessoas; aos seus cenários, muitas vezes trocados, ao seu guarda-roupa de mais de quinhentos trajes. E a sua complexa partitura onde se misturam diferentes estilos (canto lírico, cuecas, tango, jazz, salsa e cachimbo), onde estão presentes inúmeros instrumentos de percussão e muitas variações musicais e simultaneidade de diversas vozes. Há vários coros: dos vendedores de jornal, dos marinheiros, dos bêbados, dos assaltantes, dos garimpeiros, dos homens, das mulheres, o coro funerário. Há as canções: a masculina, a feminina. Há as cantoras: a negra, a loira, a morena. E há as três canções que não fazem parte da obra, mas dela tampouco estão longe e, talvez, a conduzam: a “Canção masculina”, a “Canção feminina”, a “Canção” que podem ser cantadas, segundo a orientação que as introduz, diretamente para o público, na sala ou no foyer antes de se iniciar o espetáculo ou durante os entreatos.

Elas remetem a um presente que se enreda no passado a visar, principalmente, o futuro. Na “Canção masculina”, a afirmação hoje matam negros, do primeiro verso, se completa pelas expressões como e antes que se referem ao que acontecia com os mexicanos,  chilenos,  nicaragüenses, peruanos, vítimas todos dos gringos. Até que passa um cavalo de seda e Joaquín Murieta disputa o terreno, encara o inimigo e o desafia: e como duas amapolas / se acenderam suas pistolas. Na “Canção feminina”, seu nome já é citado no primeiro verso e como o defensor de sua gente e cuja arma é a de um valente, cujas mãos, agrestes, cujos olhos, vingadores. Expressões que o desenham antes de lhe justificar os atos ou de desejá-los: Que mate os que mataram.

A “Canção” completa a trilogia. Já está liberta da figura/mito de Joaquín Murieta para se fixar mais longe em tempo e espaço definidos: Vietnam e Espanha, presa dos nazistas que sempre serão, ainda, mais amplos, pois, na verdade, pouco muda  Porque manejam a História / os cruéis e os ariscos. E, assim, não importa que os versos se fixem nas vítimas do momento e lembrem da responsabilidade dos humanos para com os humanos: todos os olhos do mundo / morrerão / porque o mundo está morrendo / no Vietnam. Porque diante das dicotomias que reinam – Bem e Mal, Paz e Guerra, Opressor e Oprimido – não perderão nunca a atualidade. Porém, Pablo Neruda interroga: Algum dia / terminará a agonia?, Terminará a crueldade / e reinará a alegria? E o que lhe é também muito próprio, cultiva certezas. E elas, nos seus versos, proclamam a alegria, a rebelião, a luta.

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