domingo, 14 de setembro de 2003

Jura de vingança


E beijando seu corpo caído, fechando os olhos daquela que / foi seu roseiral e sua estrela, jurou estremecido matar e morrer perseguindo o injusto, protegendo o caído. 

            Apresentada pela primeira vez em 1967, como cantata – poema lírico acompanhado de música – Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, peça dramática de Pablo Neruda, musicada por Sérgio Ortega, emocionou o publico. A música foi num crescendo até ficar com todos nós, disse, na ocasião, Pablo Neruda. Em 1994, o compositor decidiu transformá-la numa ópera, cuja estréia, quatro anos depois, se deu no Teatro Municipal de Santiago. Agora, no passado mês de junho e no mesmo cenário, foi novamente apresentada. Agustín Squella, no El Mercúrio do dia 17 de julho passado, de Santiago, comenta essa apresentação: Há algumas semanas, quando no Municipal de Santiago, caiu a tela de uma das funções da ópera Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, tive a impressão de que os aplausos do público convidado eram escassos, embora não pela montagem da obra ou a qualidade dos intérpretes, mas, como eu entendi, pelo desconforto dos assistentes diante do texto que enaltece a figura de um bandido, ou talvez apenas de um rebelde por cuja cabeça o governo norte-americano da época oferecia cinco mil dólares. Uma reação que demonstra, vivamente, a atualidade dos versos de Pablo Neruda, cantando o destino de Joaquín Murieta: domador de cavalos que sucumbiu à atração do ouro na Califórnia e, com outros chilenos, embarcou para os Estados Unidos nos meados do século XIX. No navio, se apaixona por Teresa e ao desembarcarem já estavam casados. Mal começara a sua luta em busca do ouro quando, um dia, ausente de casa, muitos homens com o rosto coberto por um capuz a invadiram, violaram e mataram sua mulher. Joaquín Murieta se transformou num chefe bandoleiro e o governo norte-americano – terá punido os culpados? – oferece um prêmio pela sua cabeça.

            Seis quadros compõem a obra: “Porto de Valparaíso. Partida”, “A travessia e a boda”, “O Fandango”, “Os galgos e a morte de Teresa”, “O fulgor de Joaquín”, “Morte de Murieta”. O quarto quadro se inicia com a Voz do Poeta, anunciando o que irá se passar: os homens chegando e batendo na porta, botando-a abaixo com empurrões e pontapés, os gritos de Teresa pedindo socorro e o seu silêncio e o chamado de um dos homens na porta da casa (Come on) para os seis ou sete que esperavam e que também entram na casa. Ouvem-se tiros, eles saem em disparada depois de por fogo na casa. A fumaça atrai homens e mulheres que, procurando salvar pertences, encontram Teresa violada e morta. Vozes se elevam para dizer que é preciso avisar Murieta. Segue-se um longo silêncio antes de seu grito doloroso e trágico. O coro feminino diz da vingança que ele clama, enceguecido. Vingança que irá executar no quinto quadro onde a canção masculina irá completar o que o cenário, com as silhuetas dos enforcados e o ruído de cavalgadas, mostra: Com o poncho embravecido / e o coração destroçado/ galopa nosso bandido / matando gringos malvados. Logo um recitado enumera os caídos (um, dois, sete) e três solistas interrogam o público – onde está Joaquín Murieta? Onde estão seu cavalo e seu raio e seus olhos ardentes? – indicando um paradeiro desconhecido e repetindo o que ele procura: vingar seu povo, sua raça, sua gente. E contam como as mulheres o protegem, esperando (a viúva, a irmã, a mãe) serem, também, vingadas e decretam: Galopa Murieta e incitam à vingança. Elas se retiram e se iniciam as cenas em que os homens pretendem segui-lo, em que o índio quer lhe pedir ajuda para o seu povo em que os norte-americanos decidem a sua morte. Retorna o coro feminino para predizer que a sua hora está próxima e a Voz do Poeta lhe defende as ações: justiça se chama a ira de meu compatriota Joaquín Murieta. O que a voz coletiva irá reafirmar no quadro seguinte, referindo-se a ele como raio de janeiro a vingar os seus, e às suas mãos que vingaram tantas ofensas, a seu sangue, vingador e verdadeiro, e às suas razões: Ela morreu assassinada / e ele, para vingar sua beleza, / chegou a tanta desventura. E, também, desenhando-lhe um perfil – um valente, um heróico acurralado, filho ensanguentado e sangrento do ouro e da fúria terrestre, encurralado e vencido pelo ódio e pela cobiça – dar outro significado ao de bandoleiro que pretende justificar as perseguições e a emboscada final e o opróbrio de lhe terem cortado a cabeça e a exibido numa feira.

            Pablo Neruda quis livrá-lo do esquecimento que lhe votou a pátria – A pátria esqueceu aquele espanto e sua pobre cabeça cortada e caída – e lhe canta o amargo e violento destino, convicto de que, o trazendo de volta ao Chile, nos seus versos, o Povo vai repetir a sua longa cantata de luto.

            Ainda que impere o desagrado e o silêncio dos bem-pensantes.

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