domingo, 21 de setembro de 2003

A América para alguns 1


Chileno: E por que os mataram?
Mexicanos: Porque não somos loiros, irmão! 

            Quando a cabeça de Joaquín Murieta, degolado depois de morto, toma a palavra, no último quadro da ópera que lhe conta a história, à guisa de explicação par os seus atos de bandoleiro movido pelo desespero, as nove estrofes dizem de seu amor por Teresa, violada e morta pelos norte-americanos e dos atos que a sua mão justiceira, então, praticou. E de sua preocupação de que, no futuro, aqueles que hão de vir possam saber a verdade pelos versos do Poeta: Daqui a cem anos, peço, companheiros / que cante para mim, Pablo Neruda.

            Fulgor y muerte de Joaquín Murieta é esse canto – uma cantata, depois uma ópera – que Pablo Neruda escreve e que Sergio Ortega irá musicar e que não será apenas uma obra sobre o destino do rebelde chileno ( aqui dou testemunho do fulgor dessa vida e da extensão dessa morte) mas também dos  outros seus compatriotas que foram para a Califórnia em busca do ouro que se propalara ali existir. Foram mineiros, camponeses, pescadores, aventureiros, que o Poeta relaciona no texto de Para nacer he nacido em que explica o motivo de seu poema: a inquietação diante da pergunta: era o mais famoso dos bandidos chilenos [...] apenas um bandido fora da lei? Na verdade, Joaquín Murieta primeiro foi feliz, casando-se com Teresa e encontrando ouro. Depois, marcado pela tragédia que lhe transformou a vida, se fez  um vingador em busca de norte-americanos para que não ficassem impunes as humilhações e assaltos dos bandos racistas, cuja violência ora é narrada pelo coro, pela canção feminina, pelo trio de solistas, ora mostrada pela ação em cena.

            No quarto quadro, a voz do Poeta canta o árduo trabalho de Joaquín Murieta: com areia nos olhos, com mãos ensangüentadas, espreita a glória do ouro. Logo, o coro fala da inveja e do ódio, surgidos do ouro que ele encontra e como o ianque, vestido de couro e capuz procurou o forasteiro. Mais adiante, a canção feminina fala da cavalgada que sai para matar crianças morenas, bater nas mulheres, queimar alpendres e exterminar chilenos. Outra vez, o coro falando sobre o ouro encontrado pelos chilenos que descansam, quando, envoltos em sombras, chegam os homens com capuz, os lobos se aproximam buscando o dinheiro

            No quinto quadro, as três solistas relatam da viúva que pede seja entregue a Joaquín Murieta o rifle de seu marido, assassinado; do menino que oferece seu cavalinho de pau a pedir vingança para o irmão, morto pelas costas, por um gringo; da mãe que se diz uma espiga sem grão e sem ouro porque o filho morreu assassinado.

 Mais, incisivas, quem sabe, as cenas dramáticas. Na taberna El Fandango, confraternizam os latino-americanos, designados por um e outro, ou pela nacionalidade (argentino, mexicano, chileno) e se queixam dos parcos resultados do garimpo. Decidem, assim mesmo, festejar. Um deles chama o garção e é recriminado  por um dos rangers, cujo grupo se mantivera no fundo da taberna. Ordena que deve chamar o garção (mozo em espanhol) de boy. Ao que o chileno concede: Boymozo! Mas, tampouco o que pede, chicha para todos, agrada a um outro ranger que decide: You are now in California. Here’s no chicha. In Califórnia you must have wiskhy. Os chilenos insistem em querer chicha e os rangers, que devem beber wiskhy. Impasse que termina quando os norte-americanos põem uma pistola na testa dos interlocutores e, assim, os fazem ceder e pedir: Boymozo! Um wiskhy. Um deles aconselha que se deve pedir com água e, então, todos eles esclarecerem, em uníssono: um wiskhy com water-closet!. Troça simplória que bem parece ser o que merece a arbitrariedade norte-americana. Que se mostrará mais agressiva no quadro seguinte onde numa espécie de rito com uma cerimônia ao mesmo tempo lúgubre e grosseira,  um grupo de homens com capuz, designando-se os donos do ouro, se apóiam naquele que chamam de nosso profeta Sullivan para justificar o dever que lhes cabe: queimar e enforcar os índios, os chilenos, os mexicanos, os mestiços para que exista, apenas, a raça branca. E, ainda, uma outra vez, quando os norte-americanos increpam os chilenos e os mexicanos – O que fazem aí? São cidadãos norte-americanos?  Conhecem a Lei? – dizendo que devem partir porque eles não querem negros, nem chilenos, nem mexicanos: América for the Americans.

Quando, em 1966, Pablo Neruda escreveu dois breves textos sobre Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, disse tratar-se de uma história romântica e de cor brilhante, embora termine na escura cor do luto. No entanto, ainda que seus versos expressem, num memorável lirismo, o amor entre Joaquín Murieta e Teresa e a tristeza de sua morte, relatada no quase soneto, ele se deteve, sobretudo, nessa escura cor do luto que envolve, não apenas os dois amorosos, mas aqueles que ele diz serem os chilenos agrestes que com patas de cão se soltaram em direção ao ouro, se apertaram os cintos trabalhando em quanta coisa ou coisinha puderam para receber depois o pagamento dos gringos: a corda, a bala e no mínimo um ponta-pé na cabeça.

Assim, seus versos passam a ser de muitos porque muitos foram e são e serão sempre – presume-se – as vítimas do mais forte.

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