domingo, 7 de setembro de 2003

Jura de amor


                                                                   entregarei a ti a minha vida enquanto viva/
                                                                     e quando morrer te darei a minha morte.           

Em 1963, o compositor chileno Sergio Ortega, hoje residindo na França, compôs a música para a peça Romeu e Julieta, traduzida por Pablo Neruda e que era montada em Santiago do Chile. O poeta gostou muito do sentido popular e comunicativo que essa música possuía, o que o levou a sugerir ao compositor que trabalhassem juntos na elaboração de uma obra de teatro: Fulgor y muerte de Joaquín Murieta. O resultado foi uma cantata que estreou no dia 14 de outubro de 1967 e se constitui a única obra de Pablo Neruda para o teatro. Três textos a antecedem: um deles, tirado do livro Viajes de Benjamin Vicuña Mackena, publicado em 1856 e que menciona o cemitério de São Francisco onde, numa centena de lápides pobres, os epitáfios contam a história da Califórnia, feita de fome, assassinatos, tristezas, naufrágios e vinganças e da qual não estiveram ausentes os chilenos. Igualmente, breves, os de Pablo Neruda. Num deles, rotula a sua obra de trágica, mas também, em parte, escrita de brincadeira. Quer ser um melodrama, uma ópera e uma pantomima. Daí sugerir ao diretor que a fará representar que invente situações ou objetos fortuitos, traje e decorações. No outro texto, com o título de “Antecedências”, fala sobre o personagem que dá o nome à peça e que ele considera, não como um bandido, mas como um rebelde: Joaquín Murieta, um domador de cavalos que, juntamente com outros chilenos, parte de Valparaíso, em mediados do século XIX, atraído pelo ouro da Califórnia. Durante a viagem, conhece Teresa com quem se casa e vive um idílio muito breve, porque, logo ao chegar aos Estados Unidos, ela será violada e morta por um grupo de homens que, estando ele ausente, lhe invadem a casa. Joaquin Murieta se tornará um chefe bandoleiro, cuja vida será posta a prêmio pelo governo norte-americano, disposto a pagar cinco mil dólares por sua cabeça. E sua cabeça cortada, diz Pablo Neruda, reclama essa cantata que ele, então, escreve, não apenas como uma oratória insurreta mas,  também, como um certificado de nascimento, pois seus papéis de identidade se perderam nos terremotos e nas lutas pelo ouro.



             No teatro, onde se apagam todas as luzes, se eleva a voz do poeta, anunciando a história de seu compatriota, o honorável bandido dom Joaquín Murieta. É o “Prólogo” para os seis quadros em que a voz do Poeta se fará ouvir mais cinco vezes para, juntamente com outras vozes – exclamações, queixas, coros, cantos – tirar do esquecimento a figura de Joaquín Murieta e seu destino. O quadro segundo, “A travessia e a boda”, tem início na ponte do navio, com as vozes de um quarteto que relatam o encontro e o casamento de Joaquín Murieta com Teresa: e na primavera marinha, Joaquín, domador de cavalos, tomou por esposa à Teresa, mulher camponesa. A seguir, uma canção masculina retoma o desafio da busca do ouro e o coro feminino exprime a tristeza de deixar a pátria e os presságios de má fortuna o que é quebrado pelo diálogo jocoso entre dois chilenos. Novamente, a canção masculina que cessa diante da voz do poeta a pedir silêncio para a lua de mel de Joaquín Murieta e de Teresa.Todos se retiram de cena, levando o dedo aos lábios. Diminuem todas as luzes do cenário. Céu intenso. Noite estrelada. O cenário vai-se apagando e as estrelas começam a se tornar maiores até se converterem em imensas flores de luz. Somente se vê uma pequena janela iluminada de onde saem a Voz de Joaquín Murieta e a Voz de Teresa. Escuta-se o barulho do mar. E o título “Diálogo amoroso”, anuncia a luminosa expressão de amor.

Nas primeiras estrofes, o desejo de se desvendar (sou camponesa de Coihueco, sou um homem sem pão nem poder). Logo, o amor irá conduzir os versos que os delineiam nesse desejar que se entrelaça no outro: Murieta a encontrar no ouro razão para defender a amada (Agora quero o ouro para o muro / que deve defender a tua beleza); Teresa, só a querer o que do amado possa advir (Só quero o baluarte de tua altura / e só quero o ouro de teu arado). E nos recursos do poeta, as metáforas (pela boca da amada sente o chamado da aveleira¸ percebe no seu cabelo o perfume das montanhas) e as comparações (os braços da amada são como os alelis de Caranpangue; sua voz corre como a água em movimento) revelam a ligação de Joaquín Murieta com a natureza. De seus elementos lhe vem o que aprendeu (Quanto conheço o aprendi da água, do vento, das coisas mais simples) e a aceitação de ignorar o que é impossível saber: perguntar ao amor é coisa rara, / é perguntar cerejas à Cerejeira. Todo um universo de sensações arraigadas no passado, renovadas pelo amor que o inunda e no qual se confundem a mulher e a terra natal: Beijo a minha terra quando a ti te beijo.

Um ritual efêmero de passageira alegria que logo dará lugar às palavras de esperança de Teresa a almejar o retorno à pátria e à certeza de Joaquín Murieta: O ouro é o regresso. Esperança e certeza que não irão se cumprir, pois eles estão fadados à morte em terra alheia e sob o signo da covardia. Fado que Teresa, talvez, tenha pressentido quando, nos versos do poeta, entrega a sua vida a Joaquín Murieta e também a sua morte.

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