domingo, 31 de dezembro de 1995

Os pardais .2

          No banco da praça, Armando e Geraldo conversam. No outro lado, de uma das ruas, surge um grupo de rapazes, claros e fortes, com uniforme de escoteiro. Marcham num alinhamento sem defeito e atirando as pernas para a frente e para cima. Avançam em passo de ganso, em fila de três. Sob a ordem de comando e sob a bandeira de símbolo alienígena repetem com voz forte a saudação que o braço acompanha.

          Uma cena que repete outras já vistas por Geraldo no cinema: multidões de soldados com capacete de aço, marchando naquele mesmo passo.

          Na praça da pequena cidade, Armando recém havia dito, a seu interlocutor: Felizmente o pesadelo passou. Nos dias que correm tais fatos não são mais possíveis. Referia-se ao episódio dos Muchers, um episódio de fanatismo. Mas, não percebe que esses jovens,  que avançam com ímpeto marcial, de cenho  carregado, batendo os saltos dos sapatos grossos, estão a executar em terras do Brasil rituais submissos às mesmas  idéias e convicções que, belicamente, querem ser impostas no Velho Mundo. Personagens e ações que estão em acorde com o cenário que parecia uma cidade do Reno, extraviada em terra americana.

          Para Geraldo, vindo do norte do país, era como ter cruzado os oceanos, era como estar longe da pátria. Diante de seus olhos, moças loiras, a austeridade das fachadas, o gótico da igreja. Mais do que tudo, dominando, uma visão de mundo, perfeitamente definida, sintetizada no título do romance: Um rio imita o Reno.

          Publicado em 1943, (a nona edição é de 1987 da José Olympio) nele Viana Moog delineia esse Brasil do extremo sul, o país dos imigrantes que era, para muitos, desconhecido.

          Chegados no século anterior em busca de possibilidades de vida, o quê lhes era recusado no Velho Mundo, ainda nele tinham suas raízes e não ignoravam o conflito em que sua antiga pátria mergulhava. Mas as notícias que então chegavam, eram acenos de vitórias, reafirmações de algo em que, firmemente acreditavam.
 
          Estranho a tais verdades, para Geraldo restavam apenas as imagens. As que atravessavam os mares registrando a guerra – multidões compactas, automáticas, de braço levantado. Multidões ululantes; e as que tinha diante dos olhos, na praça de Blumental: vibrante, estentório, o grupo de jovens lhes repete o gesto e saúda em uníssono.
 
          E grasnam os pardais. Em vão, Geraldo procura distinguir no matraquear infernal, no ruído ensurdecedor que eles fazem, como se quizessem atordoar, apossar-se do ninho dos outros, um outro som, uma melodia, um chilreio, um pipio de outro pássaro. Então, ele pensa que os demais pássaros cantores têm que imigrar. O canário, o bem-te-vi, o sabiá, o pintassilgo, a cotovia, os artistas da selva não podem cantar onde há pardais.

domingo, 24 de dezembro de 1995

Os pardais. 1

          A república havia apenas se instalado e o Dr. Olimpio, Embaixador do Brasil em Viena, sob a neve de um mês de março, diz de suas intenções de levar pardais para o Rio Grande do Sul: Os pardais vienenses dão um chique à paisagem, um requinte [...]. E sob o som da Valsa dos Patinadores, toma chá e degusta uma fatia da torta Sacher num ritual diferente daquele que sempre havia sido o seu lá nas suas terras do sul do país o quê parecia imperdoável para Silva Jardim. Também personagem de Luiz Antonio de Assis Brasil, neste Pedra da memória (Mercado Aberto, 1994), ele observa, impiedoso: E agora você bebe chá e come torta... Você, um gaúcho macho.O Dr. Olimpio considera que o amigo está um tanto quanto amargo porque as tarefas que lhe concernem na Embaixada - isto de carimbar passaportes e frequentar bailes -  o entedia. E, saber que no Brasil, se luta pelos despojos da República o faz decidir-se a voltar.
         
          Enquanto sua mulher dá ordens para que sejam engradados os móveis e empacotada a baixela, a louça e a roupa de cama, ele manda fazer uma gaiola de dois metros por dois, cúbica, para conter uma centena de pardais. Com o imprevisto de ter um dono, eles fazem a longa viagem por terra e por mar até a liberdade dos campos que irão invadir e povoar, sem contudo, modificar-lhes os contornos em revoadas pelos campos, em ninhos pelas praças.

          O narrador de Pedra da memória diz que alegravam as cidades com seu canto altamente europeu. Presença que seu personagem quer transplantar para que aqueles índios habitantes dos pampas se tornem mais civilizados.
         
          Porque, na confeitaria iluminada, onde se misturam os sons da música de Straus e o tilintar das porcelanas, ele pode se permitir divagações: quando comparo isto com a selvageria dos nossos hábitos, com a ausência dos pardais, com os nossos barbudos revolucionários gaúchos, com as degolas, com os combates nas coxilhas empapadas de sangue...

          Mas os pequenos pássaros migrados não foram para os da terra, tão inocentes pois não souberam ver neles as propaladas qualidades. Assim, houve quem tentasse matá-los a tiros de chumbo, alegando que destruíam as colheitas e houve quem dissesse serem uma praga, a praga dos pardais.

          Mas, dono de muitas terras e de todos esses direitos e poderes que a riqueza outorga, o Dr. Olimpio podia, também atribuir-se razões: Um dia me agradecerão de joelhos, ao comparar os pardais com essas rudes aves do pampa....

          Foi cognominado, ele um republicano, o Rei dos pardais.

domingo, 26 de novembro de 1995

Sob o sol


A origem de todos os meus relatos é sempre uma imagem simples. Todo o argumento de “La siesta del martes”, que considero meu melhor conto, surgiu da visão de uma mulher e uma menina vestidas de negro, com um guarda-chuva negro, caminhando sob o sol abrasador de um povoado deserto.Gabriel García Márquez.

 

          Já havia publicado vários contos e, em 1955, o romance La hojarasca, quando nos anos em que a Colômbia era agitada por violentas perseguições políticas, cedendo à pressão dos amigos escreve El coronel no tiene quien le escriba, La mala hora, e Los funerales de mamá grande, uma ficção inspirada na realidade de seu país.

          Depois, uma longa reflexão, como ele diz, o levaram as suas idéias literárias iniciais – todo bom romance deve ser uma transposição poética da realidade e em 1967 Gabriel García Márquez publica Cien años de soledad.

          Los funerales de mamá grande, de 1962, no dizer de Mario Vargas Llosa em Historia de un deicídio, um dos mais importantes livros sobre Gabriel García Márquez, se constitui uma ponte entre a obra anterior, inscrita na realidade objetiva e a posterior que se nutre do imaginário.

          Os contos que desse livro fazem parte foram escritos em datas diferentes e em diferentes espaços e assim, principalmente, no que diz respeito às relações entre o real objetivo e o imaginário, não possuem uma unidade.

          “La siesta del martes”, o primeiro deles, extremamente sóbrio quanto à linguagem e quanto à construção, embora distante da idéia primeira que se fazia Gabriel García Márquez do texto ficcional.

          Na longa entrevista concedida a Fernández Baso, origem do livro Una conversación infinita, ele diz ser esse o seu melhor conto, nascido da figura da mulher que, acompanhada por uma menina caminhava, protegendo-se do sol abrasador  com o guarda chuva preto, pelas ruas desertas de um povoado.

          No seu relato, a proteção do guarda chuva é recusada pela mulher ao sair da sacristia onde fora buscar a chave do cemitério. Antes de descer do trem que a levara até o povoado havia dito à menina que não aceitasse nem água ainda que estivesse com muita sede. Prenuncia, assim as relações entre elas e o povoado pois, é sabido, em terreno inimigo nada se come, nada se bebe, nada se aceita. E, para ambas era terreno inimigo aquele em que pisavam. Nele, não apenas fora baleado o homem a quem iriam homenagear no cemitério com o pobre ramo de flores envolto no jornal como morrera com a pecha de ladrão: Carlos Centeno Ayala. Único filho homem, ganhava a vida como boxeador, sempre vítima dos golpes. E desse sofrimento lhe vinha o dinheiro para comer. Ladrão – filho, nunca roubes nada que faça falta a alguém para comer - pagara com a vida a tentativa de arrombar uma porta.

          Levar-lhe flores era, amorosamente, absolvê-lo. E, caminhar sob o sol, ignorar ou enfrentar os olhares maldosos e curiosos estava, para elas, duas mulheres de luto e com os olhos secos, certamente muito aquém da grande dor que as habitava e que o texto não alude.

          Como se não fosse de sofrimento, de perda, de pobreza esse itinerário que para o leitor se interrompe quando o narrador se limita a informar: Pegou a menina pela mão e saiu para a rua.

domingo, 19 de novembro de 1995

A cadeira


Nesta minha terra quanto mais comprido se tem o rabo, melhor se escapa da ratoeira, e mais audácia e altas pretensões se apresenta.Cyro Martins.

 
          Publicado pela primeira vez em 1942, cinqüenta anos depois aparecia a sua quinta edição pela Movimento de Porto Alegre: Um menino vai para o colégio, belo momento narrativo entre os muitos que escreveu Cyro Martins.

          Como o título bem o indica, se trata de um desenraizar-se para ir ao encontro de um novo universo. A mãe chora. Carlos, nos seus onze anos, vislumbra imagens da cidade grande mas o seu destino quem decide é o pai dizendo e repetindo para a mulher: Então tu entendes que eu vou permitir que o menino se crie aqui, no meio das vacas e dos cavalos para nunca passar de um pafuera? Não senhora, ele não há de ser burro como o pai! Quero que aprenda onde tem o nariz, nem que eu gaste tudo o que tenho!Definitivas palavras pronunciadas numa convicção um tanto ingênua que lhe confere esse misto de autoridade e de ternura com que se relaciona com os que lhe estão próximos.

          Ameaça bater no filho se repetir a implicância com o cachorro mas, sem pestanejar, sacrifica o animal quando percebe estar o filho por ele ameaçado; perde a calma ao ver seus argumentos contrariados e se transforma: o rosto fica enérgico, os gestos amplos até bater na mesa fazendo vibrar a louça. Mas a ausência da mulher, chorando no quarto lhe amaina os ânimos e logo busca a reconciliação.

          Assim, o medo que eventualmente, poderia provocar – a mulher enxuga as lágrimas e aceita que o filho vá para o colégio na cidade; o filho se deixa levar, segurando o choro; e a negra Ricarda, evitando os gritos do patrão, leva o chá de laranjeira para a patroa, às escondidas – orienta o respeito que lhe é devido.

          Um respeito materializado na cadeira em que na sua condição de dono da casa e chefe da família, ele se senta à mesa. Ninguém a arreda de seu lugar e ali fica, impecavelmente cuidada: uma banca apoltronada, de encosto de sola e assento de couro de vaca, peludo. Pesava muito e embaixo do assento movediço que se parecia com uma tampa, tinha um pequeno depósito de ferramentas que devia permanecer intocado, sob pena de que o mundo viesse abaixo com os gritos de seu dono. Ficava sempre na cabeceira da mesa, atarrancada e presumida e Ricarda lidava com ela com muito cuidado, como se ali estivesse instalado o patrão.

          E o patrão, fazendeiro, cuida de suas reses. Virando político, de seus eleitores.

          Ignorando tantas razões de respeito, só o Felpudo despreza as regras ocupando-lhe a cadeira nas suas sestas modorrentas de gato que sabia ser tolice não aproveitar, ali, os raios de sol que, no inverno, a amornavam.

domingo, 12 de novembro de 1995

A menina Nini

          Seis capítulos, chamados por  Luiz Antonio de Assis Brasil de “O romance”  se entremeiam aos monólogos e narrativas em terceira pessoa para construir  Os senhores do século, terceiro volume da série Um castelo no pampa. Relatam os últimos itinerários do Doutor Olímpio caminhando para o declínio. Parlamentara, discutira, negociara, tergiversara, buscando conduzir a história do país num universo masculino feito de ambições, jogo de poder e de palavras. Nele, a mulher permanece alheia ou a se enclausurar nos seus princípios e infelicidades ou a se deixar prender no exercício da religião. Se desabrocha é porque assim lhe é permitido: Ah... tudo é bem organizado, neste mundo: um homem admirável tem mulheres espantosas. Ele dá a elas a possibilidade de desenvolverem até o mais alto grau todas as potencialidades nobres de seu sexo, as quais perante um bronco qualquer ficariam esquecidas, conclui o Doutor Olímpio, talvez com sabedoria, nesse espaço e nesse momento em que vive.

          Menina Nini, filha de conde, submetida ao casamento, como todas. E como todas ficou até o instante em que entendeu, muito além da patriarcal ordem estabelecida, que a vida poderia oferecer muito mais . Três vezes foi que se encontrou com Olímpio, ocasiões em que mal trocaram algumas palavras. Mas, foi-lhe suficiente para ter uma iluminação tão repentina e forte que a estonteou por sua verdade: um dia aquele homem seria seu.

          Assim, como soubera, algum tempo antes, que seria pedida em casamento e aceitaria o pedido, mais tarde, a mulher que se tornara iria  compreender que o homem que desejava era outro. E se dispôs a uma espera alimentada de pequenos nadas enquanto ela, filha de uma devota e de um nobre, conhecedora de todos os rituais de sua classe, foi se preparando para ser, apenas, feliz como o fora a amante de seu pai.Vislumbrava um futuro que se perdia no tempo  não se fixando em  nenhum lugar. Um futuro que não se deixava entrever e para o qual, no entanto, ela se preparava: as mudanças na casa – cortinas novas, novos tons nas paredes, outra disposição para os móveis, plantas a se expandir no jardim  - e seus hábitos sociais nos quais se incluía o aprendizado do francês  expressavam  o seu desejo de que um dia fosse não apenas uma sequência do outro, mas um acréscimo da esperança.  Esperança que lhe manteve a boniteza e no uso do  carmim nas faces  e brincos e anel,  o desejo de ser bela. Certa de que sua espera não será em vão, ao saber que o momento do reencontroo se aproxima, compreende que tudo marchava conforme imaginara.

          E, assim foi. Viúva e rica opta pela sua verdade e se dispõe, por amor, a viver somente para esse amor.

          Nesse lavrar de seu destino, a ignorar sempre os outros mundos que lhe estavam próximos, lento e espontâneo se faz um esplêndido tipo feminino, fremente de vida. E, assim,  a menina Nini como era chamada,  Urânia de seu verdadeiro nome,  irrompe nas páginas de Os senhores do século para dar vida a essas outras figuras que mornas e descoloridas dão conta de conchavos e dos homens dominados pela retórica e pela ânsia de domínio.

domingo, 5 de novembro de 1995

O itnerário das mazelas

          Talvez até fosse o caso de aceitar como definitivo esse “modelo” de político brasileiro que traçou Joaquim Manuel de Macedo há cento e quarenta anos atrás no seu romance A carteira de meu tio. Não, porém, sem considerar verdadeiramente tragicômica essa permanência imutável de um estado de espírito predominando nas soient disants elites responsáveis pelos destinos do país. Fiel a seu intuito de divulgar o autor nacional, a José Olympio acaba de lançar  esse romance cuja primeira edição é de 1855. Assim, não apenas torna possível o acesso a uma obra da literatura brasileira fadada ao esquecimento como dá ensejo a tristes e inegáveis e necessárias constatações.

          O narrador – alguém que não precisa ter nome porque basta ser o sobrinho do seu tio – com absoluta franqueza começa o relato informando das suas ambições: ser político, na verdade, um excelente meio de vida pois a pátria deve pagar bem a quem quer fazer o enorme sacrifício de viver à custa dela.

          O tio, sua fonte de renda, não o dissuade do projeto mas, exige que antes faça uma viagem pelo Brasil para conhecê-lo e evitar o usual costume de tudo copiar das instituições europeias. Pois elas regiam a realidade brasileira que, no entanto, permanecia bem distante daquela que, no entender dos dirigentes, deveria imitar.

          É essa viagem que ele registra, seguindo à risca o pedido do tio: comparar os artigos da Constituição do Império do Brasil de 25 de março de 1824, um pequeno livro que recebe antes de partir, com o que se passa no país, para se tornar ciente e, por experiência própria, de que a Constituição promulgada nunca fora, até então, cumprida.

          A viagem é feita no passo lento do cavalo ruço-queimado que o tio lhe emprestou e dura pouco, interrompida pela tarefa que ele se atribuiu diante das circunstâncias adversas: tirar da cadeia o casual companheiro de estrada, preso por ter-se defendido de uma agressão, originada pela falta de argumentos numa discussão sobre as instituições brasileiras.

          Razão suficiente para levá-lo a refletir sobre a arbitrariedade e a maneira como é aplicada a justiça.

          Antes, em longos monólogos e diálogos que entretinham o cavalgar, já havia constatado a precariedade nem sempre honrada da administração, a acomodação daqueles que exercem cargos públicos e não querem perdê-lo, a má fé nos enunciados dos projetos do governo, o rosário dos males que é a vida do pobre, os privilégios que sempre acompanham os ricos, as vantagens da conciliação partidária, eufemismo para as vantajosas mudanças ideológicas.

          E sempre se repetindo, a observação dessa incoerência constante que se ergue entre o que está expresso nas letras da Lei e a sua absoluta inoperância no viver cotidiano.

          Na verdade, se trata de uma viagem pelas mazelas do país que Joaquim Manuel de Macedo desejou apontar, levado, quem sabe, pela ingênua esperança de ajudar a sua erradicação.

domingo, 29 de outubro de 1995

Confrontos. O espelho.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.

Francisco de Aguirre, a mando da Coroa, chegara para dar voz de prisão a Juan Nuñez de Prado, o fundador da cidade. Chegara, inquirindo e diante dele, sem respostas, o capitão Guevara. Para enfrentá-lo, o padre Carvajal encontrou forças e razões e o acusado tirou palavras do fundo do coração para se explicar. Em torno desses três confrontos foi construído o quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades.
O vento soprou a noite inteira é a frase que o inicia, delineando algo do cenário em que os personagens irão se mover. Um cenário feito, sobretudo, de som e de imagens.
Ruídos de bosque, bramido de animais, relinchos de cavalo, ladrar de cães, ressoar de passos da sentinela no seu ir e vir diante da porta que guardava, o canto dos soldados e suas rápidas conversas são registrados pelo narrador ou percebidos pelos figurantes que povoam a primeira cena do capítulo: acampados perto do fogo, nas carretas, perto da cidade apenas começada ou já se esboroando, os soldados são surpreendidos pela chegada de Francisco de Aguirre.

As imagens se esboçam, então, a partir do olhar  que os soldados lançam para os borzeguins da sentinela que da luz passa para a sombra nos passos repetidos; ou, na direção das carretas ao pressentirem o perigo; e para o rosto dos índios essas feições sujas e desfiguradas, feitas sem pressa pela fome e pelas doenças.Principalmente, fixam esse momento efêmero em que o ginete de rosto distante e sem cor, com o braço levantado para o alto, passou bem perto, o cavalo galopando, os cascos a brilhar na noite, pulando sobre as chamas, para desaparecer entre as árvores do bosque.
O olhar que fixa o estático – as portas das casas fechadas, as janelas abertas, as tochas que piscavam – como que desenhando o espaço para a ação, será o dos cavalos que passam pelas ruas num trote vagaroso.
São rápidas pinceladas de um cenário que se completa com o aspecto do céu – tenebroso, apressado, coberto,  ou negro, carregado de água e a presença do vento, lúgubre e revolto - tornando-se delgado contra as árvores e contra o toldo das carretas.
Parte do cenário ou nele entrelaçado, o homem e seu desconforto. Os soldados, inertes, impassíveis, abandonados na solidão e inexpressividade da noite. Um se destaca do grupo para rir, outro para se erguer da roda perto do fogo; a sentinela ereta e sozinha, numa atitude hostil e irada.
Quietos, com as armas pousadas nos joelhos, suspiravam, dormitavam até os primeiros disparos e os primeiros medos, as primeiras interrogações. Até se erguer a voz do capitão diante dos que chegavam.E no cenário que atuam, o sussurro, o riso, o canto, os gritos, as desvanecentes imagens de um gesto, de um olhar, de uma expressão de medo ou de alegria, parecem somente alusões à presença dos que são conduzidos.
É quando Carlos Droguett mostra o seu domínio da técnica romanesca. Pretensamente privilegia o pensar e o sentir dos que podem erguer a voz; pretensamente, apenas delineia a presença dos índios e dos soldados. E, dominando o texto, muito claramente, a evidência de que, no Continente recém invadido, todos são, igualmente, donos dessa força e dessa fraqueza, marca patética dos que regidos ou não pelo silêncio, devem executar a vontade alheia.

domingo, 22 de outubro de 1995

Confrontos.O sonho renovado


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Enquanto acusa o capitão e governador da cidade em nome do Rei, Francisco de Aguirre, olha pela janela. Olha com curiosidade e torna a olhar, intrigado, as carretas. Respira a tranqüilidade que ele mesmo havia imaginado e olha, novamente, para as carretas, e para a rua que desaparecia ao longe.

Ao escutar as respostas do prisioneiro, eivadas todas das muitas razões que tivera para matar e destruir e, ao aceder ao diálogo, já fora influenciado o bastante para confessar que a cidade era muito bonita. À medida que ia escutando e se deixando convencer, reconheceu também que ela lhe agradava; conclui que se os acasos da vida assim o determinassem, os dois juntos, um dia, levantariam outras, mais longe, mais belas e perigosas.

Depois, quando decide a partida do prisioneiro, já não se domina e, gritando lhe diz que a cidade passa, a partir de então, a lhe pertencer e que, talvez, a leve embora. Juan, talvez cumpra teu sonho, diz, tornando evidente, para ambos, ter sido contaminado pela mesma febre de mudança que havia consumido àquele a quem acusava.

À espera, estão as carretas carregadas, imóveis. Francisco de Aguirre as vislumbra de longe, guardadas por suas sentinelas. Ao delas se aproximar, deixando atrás de si Juan Nuñez de Prado, já está submisso a esse sentimento de posse que seus gestos tornam evidentes: diante de cordas pendentes, alguma roupa, um par de botas velhas entre os eixos de uma carreta,  ele tudo acomoda: as cordas no seu lugar e as roupas, sentindo agrado em apalpar as madeiras e os objetos que guardavam.Sob a luz das tochas, pôde contá-las. Lamenta serem apenas sete. Passa os dedos na madeira de uma delas e a balança para conhecer sua força e sua resistência. Precisará de todas para a mudança que irá determinar. Ordena que ninguém se aproxime delas e quer saber se existem outras. Dissimula de seus filhos e do  capitão o quê já sabe ser sua vontade: levar a cidade para longe.

Procura um bom lugar para ela, havia-lhe dito Juan Nuñez de Prado, certo de que estava tão ligado à cidade quanto ele e que seu sonho agora  também lhe pertencia.
Também ele tinha certeza de que a levaria embora, carregada nas carretas, como já o havia feito Juan Nuñez de Prado ainda que, também como ele, por isso arriscasse a vida ou a liberdade.
Ao se atirar na cama para dormir, no sonho lhe aparecia a carreta cheia de ruas e praças e caminhos e parques, ele via tudo e sorria e compreendia, acomodando-se no sono.

domingo, 15 de outubro de 1995

Confrontos. A confissão.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


Envolto no vento, sob a luz das estrelas, meio adormecido no andar silencioso do cavalo, o viram chegar.
Francisco de Aguirre que o esperava, que o procurava, o reconheceu e seguido dos filhos, as bandeiras tremulando, as lanças levantadas, foi ao seu encontro. Juan Nuñez de Prado se deixa abraçar, recebe um beijo em cada face e o olhar de comiseração pelo seu aspecto doentio para se ver, logo, encerrado num aposento, as mãos e os pés amarrados.Levanta a voz, pedindo explicações e certezas pela ambigüidade desses atos que fazem com que seja recebido em meio a festas para, então, o transformarem em prisioneiro, inquirido de muitas mortes e destruições. Quer saber o que será dele.

Acusado – e as mortes sem motivo, e a justiça ou a vingança aplicada em mais de vinte prisioneiros e a cidade destruída muitas vezes – Juan Nuñez de Prado responde com palavras em que prevalecem a estranha paixão que o une à cidade que fundara e que irá se sobrepor a qualquer outro sentimento.

Uma confissão em que se despe das razões alheias – e do Rei e de Deus e da Espanha – para se mostrar o homem senhor de suas decisões e à mercê de si mesmo. Derrubei as muralhas e casas e edifícios, quebrei as asas dos anjos e os sonhos do padre Carvajal e as ilusões dos espanhóis acomodados e medrosos, ele diz e não recua diante dos verbos quebrar, odiar, matar, derrubar, despedaçar, não somente quando relacionados com bens materiais (as portas, os móveis, as roupas, as sacadas, os terraços) mas, também, quando se relacionam com a vida e o sentimento dos homens que ali queriam viver. Ações que justifica pelo medo, pela turbação que o dominam diante da beleza da cidade, erguendo-se, espalhando-se pelas planícies e pelas quebradas. E pelos sentimentos de amor e de ódio que o levavam a percorrer, nas noites, as ruas da cidade, a cavalo ou trazendo o animal pela rédea, numa peregrinação que fazia calar os seus soldados.

Então, acariciava as muralhas, seus capitéis e cornijas, sentindo com as mãos cada pedaço de madeira, tocando portas e janelas, abrindo-as e no interior, apalpando, ainda, as roupas, os móveis e a renda de um baldaquim.

E nada, tampouco a vida que nela existia – o uivar dos cães, o riso dos espanhóis ao redor de um bom fogo ou a sua tranqüila respiração no repouso do sono, o trote dos cavalos, o grito dos índios – tinha o poder de fazê-lo desistir da destruição à qual, uma e tantas vezes, a condenava. E sabe que ela será iminente e irreversível, nessa convicção inabalável que o faz dizer: uma e mil vezes o teria feito, até morrer, até fazê-la perfeita e enorme como desejava.

Palavras que provocam no seu interlocutor novas interrogações. Francisco de Aguirre as deseja respondidas, mais do que tudo, para si mesmo, contagiado que fora pela mesma louca paixão.

Paradoxalmente, a confissão que tanto desejara obter para justificar-lhe os atos passa a ter um outro significado: o de nortear seus passos. Eles serão iguais ou muito semelhantes aos passos daquele a quem buscara para condenar.

domingo, 8 de outubro de 1995

Confrontos. A coragem


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Francisco de Aguirre chegara em busca de um culpado. Perseguindo respostas – de quantas mortes era responsável Juan Nuñez de Prado, aquele que fora incumbido de fundar uma cidade – havia permitido ou ordenado que maltratassem o capelão. Amarrado, sem defesa, depois de ter sido golpeado, o padre Carvajal presumia o seu triste destino.

Quando, porém, Francisco de Aguirre o conduz ao cavalo e o ajuda a montar, devolvendo-lhe, por momentos, a dignidade, ele não o poupa. Se queres matar o governador não precisas justificar teu crime pois trazes cartas que lavam e limpam o sangue, com certeza, cartas arrancadas com enganos, mentiras e falsos testemunhos do Governador do Chile, do Vice-rei ou ainda da Audiência e da Coroa. Mas para que te desculpas, Senhor? Se vão matá-lo, faz-te credor e digno de teu crime e de tua infâmia, que será um crime grande e importante, tens que ser grande como ele e merecer também um enorme arrependimento.

Francisco de Aguirre, com palavras solenes e medidas, não recua, admitindo que não viera para matar mas que o fará se alguém tiver que ser assassinado. E insiste no que lhe interessa: encontrar Juan Nuñez de Prado.

O diálogo continua, parco. Um com as cordas ao redor do corpo, ferido o rosto, negando-se a responder; o outro, montado a cavalo, as botas bem cuidadas, a insistir.

Francisco de Aguirre, grita, baixa a voz, a eleva clara e aguda ou a mostra tranqüila, cruel e inocente, impassível, solidificada, misteriosa, como que pedindo desculpas. Acalma o sorriso e a respiração, recupera sua força e sua saúde e esse maldito sorriso mentiroso. Esporeia o cavalo e deixa transparecer no rosto, o rancor. Ameaça, trágico e teatral, que embora tenha de mandar para a degola ou para o garrote, para a forca os que a sua vontade se opõem, não permitirá a nova mudança da cidade.

O padre Carvajal ainda que ferido, humilhado, imóvel, preso nas cordas que o enlaçam sente-se forte para retrucar, argumentar, ironizar e troçar.

Afirma não ser verdade estar Juan Nuñez de Prado a fugir pois quem o deseja encontrar, o encontra; que sua presença é constante na cidade onde quer que seja. E, face às ameaças de Francisco de Aguirre, como se fingisse levá-lo a sério, responde com burlas.

A pergunta que se fizera a si mesmo – por que me bateram e me feriram se nada de ruim procuram, nem pretendem – será respondida, mais tarde por Francisco de Aguirre quando diz não gostar de frades e que ao encontrá-los os amortalha nos seus panos lúgubres.

O padre Carvajal, ao vislumbrar, de longe, a chegada de Juan Nuñez de Prado, acredita que tudo está bem e se deixa conduzir à prisão. E na prisão fica, esquecido, como os demais da expedição, por Juan Nuñez de Prado. Juan Núñez de Prado que sai da cidade preso e escoltado sem saber quem tivera medo e quem tivera coragem por ele.Sai prisioneiro – as mãos amarradas e o horizonte pela frente – para enfrentar a solidão de seu destino.

domingo, 1 de outubro de 1995

Confrontos. O temor


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


É noite de vento e, no acampamento, os soldados dormitam ao redor do fogo e nas carretas.

Aos primeiros disparos levantam-se, seguram, tensos, as armas. O primeiro cavalo, sem cavaleiro, aparece, seguido de outros, montados por soldados que avançavam pelas ruas da cidade construída a meias, destruída a meias, iluminando-as com suas tochas.

Igualmente expectantes, os capitães de Juan Nuñez de Prado: Ardiles, já adivinhando quem são eles; Guevara, a espada na mão a interpelar os que chegam, caminha ao seu encontro e, segurando pela brida o cavalo de um deles, sacode-a para forçá-lo a desmontar.

O cavaleiro havia levantado a espada desembainhada. Depois, desceu as mãos até as rédeas onde estavam seguras as de Guevara e desmontou, rindo. Bateu, sem ódio no ombro de Guevara e tirando a viseira mostrou o rosto que era branco e loiro e cheio de vida e força e calor. Riu, por sua vez, Guevara, exibindo também o rosto mas, conservando a seriedade para examinar o interlocutor e as armas e os cavalos que havia ao seu redor.

Fortes são as razões de parte a parte e, lentamente, elas são expostas nas perguntas e respostas que se cruzam.O capitão Guevara se permite informar da expedição, seus motivos e suas agruras. Mas, o silenciar as vítimas que ela fez, não o livra de ter diante dos olhos todas as ruínas, todas as forcas, os gemidos, as cordas dos prisioneiros.

Francisco Aguirre, o capitão que chega para cobrar essas vítimas, inquire breve e secamente, conhecendo já as respostas, admirando-se, porém, com elas. Parecia ter uma criança pequena na voz, pedindo maravilhas e curto tempo, um curto atroz minuto para imaginá-las e acreditar nelas.E é, talvez, para se encontrar, para se salvar, mergulhado que está no terrível mundo do mais forte e mais desumano, que ri com alvoroço e com alvoroço se abraça na árvore sobre a qual estivera apoiado, como se ela fosse um amigo, um compadre. Ri, convulsivamente, buscando com as mãos folhas, flores, relâmpagos, perfumes, restos de debilidades e covardias, brisas leves, signos de bem-aventuranças, bênçãos, decoro e sonhos. Busca as amarras de uma realidade palpável e boa e a realidade adivinhada; suposta porque própria dos homens. E, então, aquela desejada: encontrar por fim um lugar.

Carlos Droguett fixa seus gestos e desvenda sentimentos não expressos nas palavras, mas, em lampejos que afloram à consciência e da, assim a esses personagens uma dimensão profundamente humana que dilui o estereótipo de herói ou de vilão de que se alimenta a história.

Essas vozes, que faz emergir da aventura da Conquista estabelecem, então, uma dialética apenas aparente, pois quer cheguem os ibéricos ao Novo Mundo em demanda de riquezas ou talvez, de paz, ao se enfrentarem, servem-se das mesmas práticas violentas, justificadas ou condenadas segundo os interesses em jogo.

E Guevara e Francisco de Aguirre, quiçá se acreditando em campos opostos, são capitães do Rei o que não os livra de medos e de enganos. Os idênticos medos e  enganos que fizeram a Conquista.

domingo, 24 de setembro de 1995

Sob o pretexto da lenda


          Em 1979, foi vencedor do Concurso de Contos do Paraná com alguns dos episódios que, em 1981, fariam parte de um livro publicado pela L&PM, Ibiamoré o trem fantasma, agora em segunda edição pela Mercado Aberto de Porto Alegre.

          Relatos construídos ao redor de uma lenda muito simples: o repetido trajeto do trem fantasma que percorre as planícies do Rio Grande do Sul, atraindo nas suas paradas, passageiros que, levados por uma razão ou outra, enfrentam o desafio de se lançar na viagem que sabem sem retorno.
          Sempre em número de quatro, os relatos se agrupam sob onze topônimos, nome das estações. No primeiro, a lenda contada em suas diferentes versões. Seguem-se os outros três: histórias heróicas de índios no momento de confronto com os ibéricos, dramáticas histórias de amor entrelaçadas às dos próprios cronistas, narradores que, se baseando em páginas ficcionais, cartas, artigos, testemunhos anônimos contam ou relembram, por mero prazer ou por inequívocas intenções moralizantes, fatos acontecidos no extremo sul do país.
          E uma História do Rio Grande do Sul se faz. 
          Numa ficção que ao não eludir o que existe de ambíguo no mundo que retrata, se torna de perfeita verossimilhança; ainda que alimentada por esse mítico aparentemente maior do que as interrogações que, subjacentes, povoam o texto.
          Mas, no Continente, sobre dúvidas que envolvem a verdade inconteste da religião, sobre preconceitos, sobre injustiças, quase nunca há respostas.
          E Roberto Bittencourt Martins não o ignora. Por isso, entre as muitas metáforas de seu texto há também espaço para as entrelinhas.
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domingo, 17 de setembro de 1995

Livre como a Seriema

          Assim, livre como a seriema, partiu o gaúcho Lothar Francisco Hessel para conhecer a Europa em meados de 1966. O que viu, então, foi registrando, dia a dia e, em 1994, esse testemunho de quase trinta anos passados foi publicado pela Editora Parlenda de Porto Alegre sob o título Europeus vistos de perto.

          Lothar Hessel partiu do Brasil pelo Cabo San Vicente, navio espanhol cujo irmão gêmeo se chamava Cabo San Roque. Naqueles idos da década de 60, suas idas e vindas pelo Oceano Atlântico se cruzavam no meio da viagem e acontecia, então, aquele momento de confraternização entre um navio e outro. Soavam as sirenes, acendiam-se todas as luzes e os passageiros cumprimentavam alegres os que iam em sentido contrário, emocionados com a visão que se perdia na noite e no mar.

          No dia 15 de março, de madrugada, as primeiras luzes das costas da África e da Europa começavam a se avistar. E se iniciavam as andanças de Lothar Hessel pelo Velho Continente.

          Nas cidades, as visitas às igrejas e aos museus, o prazer dos espetáculos e de ser recebido pelos professores que, ligados por interesses comuns, foram, tantas vezes, seus anfitriões.

E, desfilando pela janela do trem, algo da paisagem européia que em breves descrições iluminam o texto, assim como aquelas que se originam do que vai descobrindo nas caminhadas por pequenos povoados: planícies bem cultivadas, verdes, de um verde por vezes claro e sem os matizes que oferece no Brasil; vinhedos, oliveiras, álamos, choupos, pequenos rebanhos de ovelhas, pradarias ondulantes e aprazíveis, o detalhe de um quintal de canteiros de miosótis floridos entre os quais esgueiram suas lindas corolas, algumas tulipas. E uma ou outra visão efêmera cristalizando esse momento em que um lavrador ara seu campo, um outro trabalha no trator entre as vinhas rasteiras e a mulher planta alhos perto de sua casa.

          Por vezes, insinuando-se naquilo que tem diante dos olhos, a lembrança dos campos verdes do Rio Grande do Sul, das plantações de eucaliptos, do gado solto.

          E então, quando já se viu no trem, iniciando a viagem de regresso, se sentiu contente. Pensou no cavalo gaúcho que ao perceber estar voltando para a querência, fica mais alegre, anda mais ligeiro.

          No dia 13 de junho, em Cádiz, cidade de aspecto velho e cinzento, ele embarcava outra vez, agora de volta ao Brasil, depois de três meses e vinte e dois dias pelo velho Continente.

          Deixou-o, quem sabe, um pouco melancólico ao dizer na última frase de seu livro que talvez o deixasse para sempre.

          Mas, nessas páginas em que foi anotando o seu itinerário de observador prazeroso, não apenas prolongou, para si mesmo, a sua presença como a ofereceu àqueles para quem o ato de ler é, ainda e também, uma viagem que não deve ser perdida.

domingo, 10 de setembro de 1995

Setembro


O mês de setembro, no sul do Continente latino-americano, é um mês amplo e florido. Também este mês está cheio de bandeiras. Pablo Neruda 
 
          Pausa no seu livro de memórias, Confieso que he vivido esse lembrar-se das insurreições que, no começo do século passado, despontaram ou se consolidaram nas terras do Continente. Sob o título “Bandeiras de setembro”, Pablo Neruda se põe a recordar os libertadores – Bolívar, San Martín, José Miguel Carrera, O’Higgin – que, entre façanhas, amores e sofrimentos, iniciaram no Continente um novo caminho para mudar-lhe o destino. Conclui que a História continua o seu caminho e que uma nova primavera habita os intermináveis espaços de nossa América.

          Em 1973, depois de viver essa esperança que apregoara como crença, Pablo Neruda viveria a sua última primavera. Era outra vez mês de setembro, o Chile estava vivendo a sua época de terror quando em Santiago, no dia 23, ele morria.

          Sobre a angústia, a solidão e o constante amor por Matilde, sentimentos que o acompanharam nos últimos tempos de vida, ficaram os versos dos livros publicados postumamente.

          Mas, como a hora de nascer, também os momentos da morte são vedados aos demais.

 

        
Se sabe que nacemos, diz no poema “Los nacimientos”, um dos que fazem parte do livro Plenos poderes (Losada, 1962). Quanto ao mais, porém, seja onde for – na sala, na exígua casa de pescadores, no tórrido canavial – o que existe é silêncio no momento em que a mulher se dispõe a parir.

          E a memória que se perde desse importante instante em que se transita para o existir, para ter seu corpo e amar e amar, e sofrer e sofrer.
 
          Tudo se perde na memória. De lembranças, os homens tem nada mais do que a vida, anotada dia a dia, no tempo que transcorre, no amor concedido.

          Sobre aquele minuto de morrer, nada se diz, ele é dado a outros de lembrança / ou simplesmente à água, à água, ao ar, ao tempo.

          Nesse refletir sobre o nascer e o morrer, a verdade de Pablo Neruda é para todos. Como para todos, verdadeira oferenda, é a beleza de seus versos.

 

 

 


 

 

 

 

domingo, 3 de setembro de 1995

As águas esquecidas

          Mais de dez livros de poesia e outros tantos em prosa já havia publicado João Manuel Simões quando, em 1982, indignado, escreve o belo poema que irá alimentar a memória de algo que não deverá ser nunca esquecido: a destruição das Sete Quedas.

          Réquiem para Sete Quedas é um longo poema, feito de sete cantos cuja intenção primeira é claramente expressa na dedicatória. Uma dedicatória que não presta homenagem mas, incisiva, atribui responsabilidades aos homens que por ação ou omissão determinaram a extinção das Sete Quedas.

          Cada um dos cantos se constitui um poema em si, independente dos demais. Unidos, eles são por esse primeiro verso de cada um deles. Encerrados entre o topônimo Sete Quedas, que inicia o poema e se repete no primeiro verso do sétimo canto, os verbos presentes nesses versos (fazem e não tornam), os substantivos (sete noivas e motoniveladoras) e o adjetivo (mortas) formam uma verdadeira síntese da realidade que o poeta quer apreender. Tentando fixar a beleza desaparecida e erguendo a voz para acusar o crime cometido. Primeiro, nas breves e esplêndidas definições do que foram as Sete Quedas. Depois, no testemunho dessa agressão de sabê-las imobilizadas, enterradas sob a fria e impura lápide. Para, então, anunciar o responsável por essa destruição irreversível sobre a qual resta apenas um dobrar de sinos e a utopia de que talvez renasçam quando sete milhões de anos houverem passado.

          Uma belíssima expressão poética, ora a desenhar esse mundo de água condenado a morrer pelos mortais, ora a sugerir cores e sons e formas. E as águas das Sete Quedas se antropomorfizam. Do verso de João Manuel Simões emergem um rosto, cabelos, colo, ventre que, no entanto, feitos de cristal, de afluentes de sol, de claros diamantes, distam dos humanos. Mas, é, ainda sob o código dos humanos – sete noivas mortas, desaparecidas – que o poeta as vê no silêncio, na angústia, na solidão.Silenciadas pelos punhais pungentes, / obscenos, / tecnológicos, / dos homens que só sabem / sonhar sonhos inúteis, / metalúrgicos.

          Desoladamente, o poeta registra esse silêncio ignominiosamente decretado e irreversível, esse desaparecer ao qual só resta a súplica de um orai por elas.

          É um grito acusatório no qual se combinam o sofrimento pela perda injusta e a coragem de levantar a voz para clamar contra a arbitrariedade num tempo difícil em que era exigido que reinasse no país o silêncio. João Manuel Simões falou no seu poema pelos que se sentiram injustiçados, derrotados, impotentes. Pelos que, diante das imagens que então, foram sendo mostradas – das águas represadas a subir pouco a pouco, espantando a vida das terras circundantes – só lhe restou chorar.

          E chorar diante do irremediável, imposto pelos senhores parece ser o fado dos homens do Continente.