domingo, 15 de outubro de 1995

Confrontos. A confissão.


A cidade de Barco foi fundada por Juan Nuñez de Prado, diz a Crônica da Conquista. Recebera essa incumbência do Vice-rei do Peru e, com duzentos homens, se lançara à aventura pelas terras do Continente. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, Juan Nuñez de Prado muda o assento da cidade o que não ocorre sem as violências que são possíveis quando rege um Poder Absoluto, exercido em nome de Deus e do rei. Preparava-se Juan Nuñez de Prado para outra vez transferir a cidade de lugar quando chega Francisco de Aguirre para impedir essa mudança. O quarto capítulo de El hombre que trasladaba las ciudades se inicia com esta chegada, gênese dos sucessivos confrontos entre seu querer e o desses homens que já lá estavam numa aventura que justificavam no que acreditavam ser o desejo do rei, no que presumiam, ou fingiam crer, ser o de Deus.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permite seja vislumbrado o universo desconhecido que, os espanhóis, cheios de sonhos e perdendo-se no tempo, quiseram conquistar.


Envolto no vento, sob a luz das estrelas, meio adormecido no andar silencioso do cavalo, o viram chegar.
Francisco de Aguirre que o esperava, que o procurava, o reconheceu e seguido dos filhos, as bandeiras tremulando, as lanças levantadas, foi ao seu encontro. Juan Nuñez de Prado se deixa abraçar, recebe um beijo em cada face e o olhar de comiseração pelo seu aspecto doentio para se ver, logo, encerrado num aposento, as mãos e os pés amarrados.Levanta a voz, pedindo explicações e certezas pela ambigüidade desses atos que fazem com que seja recebido em meio a festas para, então, o transformarem em prisioneiro, inquirido de muitas mortes e destruições. Quer saber o que será dele.

Acusado – e as mortes sem motivo, e a justiça ou a vingança aplicada em mais de vinte prisioneiros e a cidade destruída muitas vezes – Juan Nuñez de Prado responde com palavras em que prevalecem a estranha paixão que o une à cidade que fundara e que irá se sobrepor a qualquer outro sentimento.

Uma confissão em que se despe das razões alheias – e do Rei e de Deus e da Espanha – para se mostrar o homem senhor de suas decisões e à mercê de si mesmo. Derrubei as muralhas e casas e edifícios, quebrei as asas dos anjos e os sonhos do padre Carvajal e as ilusões dos espanhóis acomodados e medrosos, ele diz e não recua diante dos verbos quebrar, odiar, matar, derrubar, despedaçar, não somente quando relacionados com bens materiais (as portas, os móveis, as roupas, as sacadas, os terraços) mas, também, quando se relacionam com a vida e o sentimento dos homens que ali queriam viver. Ações que justifica pelo medo, pela turbação que o dominam diante da beleza da cidade, erguendo-se, espalhando-se pelas planícies e pelas quebradas. E pelos sentimentos de amor e de ódio que o levavam a percorrer, nas noites, as ruas da cidade, a cavalo ou trazendo o animal pela rédea, numa peregrinação que fazia calar os seus soldados.

Então, acariciava as muralhas, seus capitéis e cornijas, sentindo com as mãos cada pedaço de madeira, tocando portas e janelas, abrindo-as e no interior, apalpando, ainda, as roupas, os móveis e a renda de um baldaquim.

E nada, tampouco a vida que nela existia – o uivar dos cães, o riso dos espanhóis ao redor de um bom fogo ou a sua tranqüila respiração no repouso do sono, o trote dos cavalos, o grito dos índios – tinha o poder de fazê-lo desistir da destruição à qual, uma e tantas vezes, a condenava. E sabe que ela será iminente e irreversível, nessa convicção inabalável que o faz dizer: uma e mil vezes o teria feito, até morrer, até fazê-la perfeita e enorme como desejava.

Palavras que provocam no seu interlocutor novas interrogações. Francisco de Aguirre as deseja respondidas, mais do que tudo, para si mesmo, contagiado que fora pela mesma louca paixão.

Paradoxalmente, a confissão que tanto desejara obter para justificar-lhe os atos passa a ter um outro significado: o de nortear seus passos. Eles serão iguais ou muito semelhantes aos passos daquele a quem buscara para condenar.

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