domingo, 29 de dezembro de 2002

Os Sertões

           O terceiro capítulo, “O Homem”, da segunda parte de Os Sertões se inicia com a sua frase mais conhecida e mais citada: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Introdução ao longo texto em que Euclides da Cunha o define a partir da sua aparência física, de suas ações e de uma visão de mundo, estreitamente relacionada à paisagem que o rodeia e lhe determina o modo de ser e as condições de vida. E, no intuito de completar-lhe o tipo, recorre, considerando-o a sua antítese, à figura do gaúcho. Um gaúcho que, antes de mais nada, ele explicita  ser do sul e ao qual dará um perfil que estará em acorde com aquele que, literariamente, lhe tem sido feito, ao longo dos anos, e não somente no Brasil, como na Argentina e no Uruguai. Nada irá dizer sobre o seu aspecto físico – na verdade, o gaúcho quase sempre é descrito por suas idiosincrasias – quando, ao contrário, não poupa o sertanejo de seus adjetivos desmerecedores. Como soe acontecer nos textos que tratam do gaúcho e como o fez com o sertanejo, não o dissocia de seu meio: plainos sem fim, natureza carinhosa que o encanta, natureza deslumbrante que o aviventa, o meio que lhe irá moldar o caráter, definir os afazeres, influenciar-lhe o vestir. A vida, que no dizer de Euclydes da Cunha, lhe decorre farta e variada, não lhe dá tristezas e nela o trabalho significa uma diversão. O rodeio, uma festa diária, realizada nas mangueiras – marcando o gado, curando-lhe as bicheiras, apartando os que irão para a charqueada, escolhendo os que serão domados – ou em pleno campo, perseguindo o gado esquivo, em meio ao alarido e à alacridade de uma diversão tumultuosa. Na luta é valente, inimitável, lançando-se aos embates com a despreocupação soberana pela vida. Sua vestimenta, versus a do vaqueiro, toda de couro, como uma armadura, é um traje de festa que se completa no arreiamento complicado e espetaculoso, fazendo com que bem lhe assentem os qualificativos de vitorioso, jovial e forte.


            Abundantes e laudatórios, esses adjetivos que o definem tanto quanto os vocábulos sul rio- grandenses, remetem às asserções de Wilson Martins, no artigo publicado em 1952, na Anhembi (número 24), de São Paulo, “O estilo de Euclides da Cunha”, sobre as constantes marcas estilísticas de Os Sertões: a adjetivação e o exacerbado gosto pelo léxico opulento de nossa língua. A adjetivação sobre a qual se funda, no dizer do articulista, o estilo de Euclides da Cunha, presença constante junto aos substantivos e no seu acúmulo, pois ele não recua de os amontoar, uns atrás dos outros [...]. E o uso persistente e predileto das palavras raras, termos técnicos, palavras arcaicas ou de uso pouco comum, modismos do velho português e também da linguagem puramente oral dos grupos isolados do interior.

            No entanto, os adjetivos usados por Euclides da Cunha para definir o gaúcho como tipo social – aventureiro, jovial (pleonástico), diserto, valente (pleonástico), fanfarrão, despreocupado, vitorioso, inimitável – em nada diferem daqueles que estão presentes nos textos ensaísticos ou ficcionais que procuram explicá-lo ou fazem dele um personagem de contos e romances, tema de poemas. Assim, os trabalhos em que se lança – galope fechado, corcovear raivoso, parar rodeio, encalçar os bois esquivos, fazer tombar o touro alçado, marcar e apartar o gado; assim, sua vestimenta: pala, bombachas, esporas de prata, lenço de seda, encarnado, sombreiro, guaiaca e botas russilhonas. Tampouco diferem os termos específicos utilizados, cujo registro se encontra no Vocabulário sul rio-grandense, da Editora Globo de Porto Alegre e no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Zeno e Rui Cardoso: chilenas, coxilhas, mangueira, peleador, poncho, redomão, sanga, tambeiros. Entre eles, na edição de Os Sertões (1946, da Francisco Alves), baguaes, bombachas, entreveros, estância, guaiacas, parar rodeio, pealador, pingo, russilhonas, como o próprio termo gaúcho, aparecem em itálico. Curioso, porém, o emprego de certos termos: disparada, por exemplo, indicando corridas de cavaleiro; com esse sentido, porém, não possui registro nos dicionários citados onde consta como dispersão de animais ou da tropa; o adjetivo inseparável, qualificando pala, uma prenda de vestir, semelhante ao poncho, mas que, sendo de tecido mais leve, não abriga dos rigores do inverno; chimarrão amargo, pois o uso corrente é chimarrão (o que se prepara sem açúcar), também chamado de mate-amargo e que, na sua expressão, resultou num pleonasmo; e, essa outra em que generaliza assado com couro como sendo um alimento do cotidiano. Igualmente curioso, dizer que o cavalo sócio inseparável dessa existência algo romanesca é quase objeto de luxo, expressão que dificilmente caberá num texto sobre o gaúcho ficcional ou não. Porque ser quase objeto de luxo está longe de oferecer a verdadeira dimensão do que une o gaúcho ao seu cavalo.

            Ou seja, o uso que faz dos adjetivos e dos termos específicos para traçar o perfil do gaúcho, permite observar que Euclides da Cunha apenas compartilha dos que já existem em outras páginas – e elas são numerosas – sobre o gaúcho. Se a paisagem do Rio Grande do Sul e o gaúcho não fizeram parte de sua vivência – como ocorreu com outras paisagens e outros tipos humanos do Brasil – é um motivo a mais para considerar que um e outro se lhe tornaram conhecidos através de textos. E nos quais a figura do gaúcho se mostra, e assim o percebeu Euclides da Cunha, muitas vezes, verdadeiramente, cativante. No entanto, quando o seu objetivo primeiro era falar sobre o sertanejo, que leituras e razões o teriam levado a sucumbir à sedução dessa figura mítica rio-grandense, da qual somente se louvam as virtudes, e incorporá-la, a seu modo e com o seu talento, ao universo de Os Sertões, não recusando, para isso, em se adentrar em trilhas já há tanto e por muitos percorridas?

 

 

domingo, 22 de dezembro de 2002

So o sol quadrado 4

            Miguel Cara de Angel era o homem de confiança do presidente. Um presidente cuja figura tem sido bem conhecida num Continente em que tudo pode ser acomodado para atender os interesses de alguns. E onde as palavras, mais do que seus reais significados, muitas vezes, nada mais são do que os eufemismos necessários para esconder inconfessáveis realidades. E Miguel Cara de Angel fazia parte da coorte de submetidos que, obedecendo, cegamente, ao senhor presidente faziam do país um território do medo, da injustiça e da opressão, e isto lhe  valia os privilégios de praxe.  Porém, teve a desdita de se apaixonar pela filha de um homem, condenado, arbitrariamente, como tantos outros, à morte e com ela se casar. Razão considerada suficiente para cair em desgraça. A história de seu amor e de seu destino é a linha narrativa a conduzir o romance El señor presidente do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, Prêmio Nobel, 1966 (Losada, Buenos Aires, 1948), um dos mais terríveis libelos já escritos contra um ditador. Dividido em três partes, sob um signo do tempo, “21, 22 y 23 de abril”, “24, 25, 26 y 27 de abril” e “Semanas, meses, años” que, na verdade, resulta atemporal, pois o que relata não é apanágio de uma história ou de um lugar, mas pode sê-lo de muitos e de diferentes épocas. Na trama, um coronel é morto por um mendigo que a maldade humana deixara fora de si. O presidente aproveita para atribuir a culpa de sua morte a um dos generais, mas não lhe convém pô-lo na cadeia e urde uma trama para matá-lo dentro da lei, induzindo-o, através de um de seus sequazes, à fuga. Quem irá elaborar o plano e executá-lo será Miguel Cara de Angel. E tudo sairia a contento não fosse o amor que irá sentir por Camila, a filha de sua vítima. No desejo de ajudá-la, em meio do desespero ao se saber órfã e desamparada, acaba enfrentando o amo ao se casar com ela. O castigo não se fará tardar.Vai ser, oficialmente, enviado em missão aos Estados Unidos, mas no porto, prestes a embarcar, é detido. Um homem, alto, pálido, meio louro, como ele, se apossa de seu passaporte, de seus documentos, de seu dinheiro e de sua aliança e parte no seu lugar. A golpes, o transladam para um vagão imundo que o levará de volta à capital onde sua mulher espera a carta com notícias. E, para ela, são horas que se sucedem, dias, semanas, meses, anos na busca desesperada, no silêncio como resposta. Num calabouço, em algum lugar da cidade, Miguel Cara de Angel vai perdendo a vida: Duas horas de luz, vinte e duas horas de escuridão completa, uma lata de caldo e outra de excrementos, sede no verão, no inverno o dilúvio, esta era a vida nos cárceres subterrâneos.  Síntese de uma sucessão de horrores que povoam o penúltimo capítulo do romance em páginas onde a crueldade do ser humano para com o seu semelhante parece atingir o paroxismo. E não apenas no intento da destruição física de quem não foi julgado, nem sentenciado a não ser pela vontade do presidente na sua busca de vingança. Mas, também, de sua alma, ao fazê-lo acreditar que a mulher amada, ao ver-se no abandono, se tornara amante do homem que o estava destruindo e com a falsa história que lhe mandara contar, lhe desferira o golpe final.

            No “Epílogo”, uma procissão de presos, um louco a proclamar loucuras e o estudante que vai para casa onde encontra a mãe presa a seu rosário. Suplica pela paz entre os príncipes cristãos, pelos que sofrem perseguição da justiça, pelos inimigos da fé católica, pelas necessidades sem remédio da Santa Igreja. E pelas benditas almas do Santo Purgatório.      

domingo, 15 de dezembro de 2002

So o céu quadrado 3

            La canción de nosotros, de Eduardo Galeano, escrita entre 1973 e 1974, como romance, foi prêmio Casa de las Américas, em 1975. Construído em duas linhas narrativas, “El regreso” e “Andares de Ganapán” que se alternam com breves textos, “La ciudad”, “La máquina”, e “El Santo Oficio de la Inquisición”. “La ciudad”, se refere à cidade de Montevidéu, no tempo do terror vivido sob a ditadura que imperou no Uruguai nas décadas de setenta e oitenta; “La máquina”, à cenas de tortura, ao ensejo da existência do delator, ao cadáver jogado nos baldios, à felicidades truncadas; “El Santo Oficio de la Inquisición”, uma transcrição de documentos do Tribunal, em Lima. Uma das linhas narrativas, “El regreso”, nos seus sete capítulos, relata a experiência de Mariano, jornalista que foi preso por indagar o paradeiro de um amigo desaparecido. O relato se faz, inicialmente, pelas palavras de um narrador onisciente que lhe segue os passos, nas primeiras horas da manhã, até o café onde irá se encontrar com a mulher que abandonou três anos antes sem explicar as razões e motivo de seu regresso. A ela, irá dizer as palavras que o perseguem, relatando a sua última noite de trabalho no jornal quando o pedido de um amigo, que a greve fracassada obrigara a se esconder, o leva até o seu apartamento onde são surpreendidos pela polícia. Consegue fugir e perambula muitos dias pela cidade, dormindo nos ônibus, a desconfiar de todos e, no intento de salvá-lo, procura amigos e advogados que, no entanto, já pouco podem fazer. E houve o dia em que acaba sendo apanhado. Suas palavras, ao narrar essa trajetória, iniciada com o suplício que lhe impuseram de permanecer de pé, com as pernas abertas e as mãos amarradas atrás das costas, durante noites e dias e que segue com os interrogatórios sob tortura, com o tempo passado incomunicável, com o rosto sempre coberto pelo capuz e com a fuga, registram as atrocidades a que foi submetido e a consciência da escassa vida que lhe restava.

            Interrogado, o sofrimento físico se alia ao moral, ao medo desse momento em que tudo irá recomeçar e a fronteira das dores se dilui porque elas “se sobrepõem e se anulam umas às outras” para voltar todas juntas no interregno entre uma sessão e outra. Sobretudo, ao medo da tentação de se salvar, entregando um dado, apenas um, ou de se cortar os pulsos com os vidros da janela ou de se atirar por ela abaixo. E estar nu diante dos que estão vestidos; nada poder ver com o capuz a tapar-lhe o rosto diante do olhar do outro; ter as mãos e os pés atados, diante dos que estão livres; sentir-se doente e fraco, diante dos que estão saudáveis é um tormento a mais. Ao qual se acresce o ser mantido com o rosto enfiado no capuz numa cela onde é impossível permanecer de pé sem ter que dobrar o pescoço, ouvir gritos a qualquer hora e num isolamento de incontáveis dias sem luz. Rotina quebrada, um dia quando tiraram os prisioneiros das celas e lhes permitiram tirar o capuz, anunciando duas horas de recreio em que poderiam se mover, não, porém, se comunicar uns com os outros. No primeiro momento, ninguém teve coragem e permaneceram quietos. Logo, os que ainda tinham força, se movimentaram, embora as condições físicas não permitissem que fosse por muito tempo. Outros nem isso conseguiam. De volta à cela, o capuz foi dispensado e o horizonte de Mariano se ampliou: Podia ver o mundo por um buraquinho. O mundo era um corredor, mas isso ajudava. Pouco, pois sabia que nas próximas torturas iria sucumbir e a idéia de fuga passou a dominá-lo. E imaginar e tornar a imaginar como realizar tal proeza, como um único preparativo a seu alcance, o correr na cela, no mesmo lugar. O que de fato lhe valeu ao se lançar muro abaixo e correr, alvo das balas e dos cães treinados até se atirar no arroio sujo, continuando a fugir na água, entre braçadas e o mergulhar a cabeça na água podre. Apenas ao amanhecer saiu do arroio, já sem poder caminhar, as mãos feridas pelos vidros do muro. Deixou-se cair sobre o capim. Ainda, vai contar como um antigo operário metalúrgico sem emprego, o achou¸ levando-o para o seu rancho e lhe vendou as mãos com trapos e o agasalhou por uma semana. E como foi embora sem se despedir e caminhou muito para atingir as margens do rio e cruzar a fronteira num barco de contrabandistas.

No último capítulo do livro, dá-se o reencontro de Mariano com Ganapán, o homem que o socorreu e cuja história constitui “Andares de Ganapán”, assim como a de Mariano, feita de sete capítulos: Mariano voltou ao caminho da fuga. Está querendo rumar, pela margem do arroio, para a casa do homem que o recolheu. O relato volta, pois, a ser feito pelo narrador onisciente que vai acompanhar outra vez Mariano, agora às aforas da cidade, entre a fila de ranchos entortados por muitos vendavais e tormentas. Ele não sabe o nome de quem o ajudou que, por sua vez, ignora o seu. Mas, se abraçam no reencontro e partilham da comida pobre, sem tempero, porque no armazém não fiaram o azeite, nem os tomates, nem a cebolinha verde. Mariano explica ter voltado para agradecer e também... A expressão se interrompe e as curtas seqüências que seguem apenas lhes completam a idéia. Que, no entanto, desabrocha na ultima frase: As duas sombras gigantes, se aproximam na parede de lata, sugerindo uma nova e oportuna conspiração.

Porque ainda era, no Continente, o tempo da esperança no poder da luta e das conquistas.

domingo, 8 de dezembro de 2002

Sob o sol quadrado. 2


            Norberto, no armazém onde ele chegou para comprar cigarros, lhe pagou os fósforos e depois o incorporou ao grupo na viagem curta, divertida até o mar. Os outros acharam que era meio louco, mas para Norberto isso não tinha importância. Assim, quando decidiu não retornar a Porto Alegre, conforme o combinado, mas continuar a viagem mais para o norte, o levou junto. Em Torres, comprou passagens de ônibus para Araranguá. Chegaram noite fechada, avistando primeiro o rio, depois a cidade, marcada por uma fileiras de carvãozinhos mal acesos. E o ônibus não chegou a parar, já aconteceu a interpelação, indagando por Norberto, na voz dura e precipitada de um dos três homens que tomaram posição perto do veículo. Foi o começo de uma outra viagem: aquela decidida pelas autoridades, ao considerá-los agitadores, e, aleatoriamente, presos de importância. Será narrada na segunda parte do romance O Louco do Cati,  de Dyonélio Machado (Porto Alegre, Editora Globo, 1942), que tem por título “No escuro”, síntese sugestiva para os dezesseis capítulos que dão conta da prisão de Norberto e seu companheiro, da sua  transferência de Florianópolis para o Rio de Janeiro a bordo de um navio e da permanência na casa de detenção.  Como nas mãos das autoridades locais que os detiveram em Araranguá seriam sem proveito, os despacharam, no mesmo ônibus que haviam chegado, para Florianópolis. Lá foram encarcerados: porta fechada com grades e um soldados de baioneta calada  montando guarda. Logo, a cela, junto com outros presos e a mudança, num tintureiro, para o navio rumo à capital. Novamente o tintureiro e a chegada ao destino, sendo designados a um cubículo, cujo número, “quatorze”, dará nome ao capítulo. Juntamente com os cinco seguintes que irão lhes registrar o cotidiano de presidiários. Um cotidiano definido pelas relações que se estabelecem entre os que devem compartilhar um espaço exíguo, um longo tempo sem proveito e pelos seus pobres e tristes rituais.

            Num primeiro momento, a acolhida a Norberto e ao seu companheiro pelos que lá estavam
na boa vontade em dividir a comida, que não era muita, na satisfação pela existência das duas esteiras que haviam servido a outros dois presos, transferidos dias antes, no empréstimo dos travesseiros, na disposição em fazer um café, no interesse em desejar saber de onde vinham, em prestar as informações sobre as normas, em ceder roupas, em conseguir-lhes os serviços de mesa: a colher e a caneca de alumínio que servia como chicrinha de cafezinho, taça de café grande, copo pra água e prato fundo de sopa. Depois, no tempo que passa, os rituais, comandando os homens na distribuição dos alimentos, nos cuidados com a higiene, na hora do lazer.

            O café da manhã, isto é, o bromureto, mistura anafrodisíaca, era servido numa vasilha de lata, espécie de regador de jardim, sem o ralo, cujo bico era introduzido pelas grades para despejá-lo nas canecas e que era acompanhado de pão, um para cada preso. O almoço, levado em caixões-bandejas, lenta operação que, não raro, terminava no meio da tarde, chegando, por vezes,  após a  sobremesa, a laranja dos asilos e das penitenciárias. Também a higiene, ocorria em dois tempos: a coletiva, quando era feita a limpeza da cela e a individual, no chuveiro improvisado. Inicialmente, o combate ao percevejo, feito com uma tocha de papel de jornal que percorria os lastros e os varões das camas e os buracos das paredes que eram, tapados com sabão. Logo, a limpeza da  “louça”, da pia, do water closet. Por fim, a lavagem do chão. Para o banho, improvisada uma pequena cerca. No chão, um buraco, perto da parede ia alcançar o cano de esgoto da pia. Na torneira, em cima, adaptava-se um  “cano” feito com meia dúzia de latas vazias de doce de coco, embutidas umas nas outras. A altura em que o cano deveria ficar, era regulada por um cordel que se fixava num prego na parede e que partia de sua extremidade livre. – Abria-se a torneira. A água era recolhida por aquilo. O sujeito baixava-se um pouco e recebia-a  nas costas. Não muito, porque a água tinha hora para chegar  e chegava num fiozinho. Como o meteórico sol dos encarcerados, essa hora em que podiam caminhar, exercitar-se, fazer ginástica, conversar e que se extinguia tão breve, no retorno aos cubículos, poços sem luz.

            No último capítulo dessa segunda parte, Norberto que não se descuidara, tirando proveito das oportunidades de se comunicar com o exterior, consegue sua liberdade e, então, também a de seu companheiro. Para trás deixa o cubículo quatorze, retornando  à sua vida de sempre e inicia a necessária e imprescindível tarefa de conseguir meios de voltar ao sul. A cadeia não mais será mencionada, como se tivesse sido, apenas, um episódio à parte e sem importância. E a narrativa de O Louco do Cati, como a vida, segue o seu curso, espelhando nos capítulos seguintes, um mundo, talvez, ou certamente, utópico nessa força solidária que o move. Sem dúvida, a mesma que orienta a escrita de Dyonélio Machado. Uma escrita que não foi contaminada pelo horror da perda de liberdade, dos maus tratos, da injustiça sofrida, embora quarenta anos passados de sua experiência na cadeia – Dyonélio Machado esteve preso de 1935 a 1937, por delito de opinião – ele dissesse: Eu tenho duas vidas. Uma antes e outra depois da prisão.

            Nas últimas linhas de O Louco do Cati há um sol dourado que tudo ilumina.

domingo, 1 de dezembro de 2002

Sob o sol quadrado. 1


            No dia 2 de abril de 1964, a casa de Mário Lago foi invadida por doze homens, portando metralhadoras e bombas de gás lacrimogêneo, que o buscavam para lhe dar voz de prisão. E para a prisão, como tantos outros, trancafiados por razões as mais obscuras, bizarras e inacreditáveis, ele foi. E sobreviveu, o que mais tarde – a repressão instituindo a tortura e a prática do desaparecimento – nem sempre foi possível para os ditos inimigos do sistema. Uma aventura, com todos os seus riscos imagináveis, que ele houve por bem narrar na convicção de que toda experiências deve ser passada adiante e sob o título de Reminiscências do sol quadrado, foi publicada, em 1979, pela Avenir Editora, do Rio de Janeiro. Na verdade, se o leitor assim quiser, um pequeno manual de humor, entremeado das crueldades devidas à ignorância e ao arbítrio que, no entanto, não bastaram para esmaecer a grande confiança de Mário Lago nos seus semelhantes. Assim, o livro se inicia com o episódio de sua prisão, em circunstâncias, no mínimo jocosas e termina com a lembrança de um episódio, marcado pela solidariedade.

            Vindo à luz depois de quinze anos dos fatos terem ocorrido mostrou que, na verdade, o passar do tempo não faz esquecer nem o medo, nem a angústia vividos pelos que são presos aleatoriamente. Tampouco, o ridículo da repressão cujos executores de ordens muito poucas vezes sabem o que estão fazendo. Não compreendi, até hoje, por que tanto aparato para me prenderem. O fato é que, após meia hora de perequeteio pela casa, um tira resolveu pedir reforços, como se tivessem cercado uma fortaleza disposta a resistir até o último homem, narra Mário Lago numa seqüência que, seja pelos seus termos, seja pela comparação não isenta da troça, está na medida certa dessa ação disparatada e truculenta. Disparate e truculência que irão guiar as sucessivas e injustas prisões que passaram a ocorrer.

            Levado para o Dops, transferido para a Ilha das Flores e depois para a prisão Fernandes Viana, ele foi encontrando conhecidos e esses outros que também nada deviam, nem tinham consciência das razões do que lhes estava a acontecer. Um exemplo extremo é o de José Emídio de Jesús, um dos casos mais característicos da bestialidade vivida naqueles dias, segundo expressão de Mário Lago que o descreve como preto a doer a vista, pouco menos que débil mental, nem o próprio nome sabia dizer direito. Vivia de biscates e foi preso por uma patrulha do exército, na Estação Engenheiro Pedreira, quando não conseguiu explicar o que estava fazendo ali. Ficou na cadeia cinqüenta dias porque ele, com seu andar vacilante, com suas palavras que mal se entendiam, com seu riso que era mais um arreganhar de gengivas, que dentes já não tinha há muito tempo, talvez fosse, na opinião daqueles que o prenderam o líder dos camponeses, o homem que conduziria a reforma agrária, e que só podia estar na gare da estação à espera dos companheiros com que ia internar-se no mato e iniciar a guerrilha rural. Um episódio exemplar, para, entre outras coisas, definir uma das formas de relação entre as classes, no país. Junto com outros, quem sabe engraçados, talvez dê sentido, como lembrou Mário Lago, às extraordinárias palavras de Brigitte Bardot que ele percebe cheias de ironia: Adorable votre révolution. 

            E o livro termina não com o momento de sua liberdade: na década de setenta, ela, ainda, era uma esperança, mas com aquele em que sua filha é levada presa para a Ilha das Flores e sozinha em sua cela, inquieta sobre o que poderia lhe acontecer, escuta, cantada por muitos, a marcha rancho de Chico Buarque Quem é você?/ Me responda que eu quero saber. A lucidez se lhe sobrepôs à emoção e ela começou a cantar os primeiros compassos de Ai que saudades da Amélia. Uma voz, que ela não sabia de onde vinha, passou a informação E’ a filha do branco.

            Mário Lago apenas acrescenta – O resto agora era fácil, ela sentia que não estava sozinha – numa soberba profissão de fé na força e na felicidade de estar entre os seus. Apesar de tudo.    

domingo, 24 de novembro de 2002

O Poeta e o cão

Para o Dov.

As odes de Pablo Neruda se inscrevem, no dizer de Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmovil. Buenos Aires, Losada, 1966), no desejo de uma poesia simples para gente simples. Começou a escrevê-las em 1952 e, dois anos depois, reunidas em livro, Odas elementales, foram publicadas pela Losada de Buenos Aires. A crítica, inclusive aquela dos que até então haviam manifestado, em relação a sua obra, toda sorte de reservas, lhe foi, desta vez, elogiosa, submetida à alegria que impera nesse cantar, nascido das mais pequenas coisas. A esse primeiro volume, se acrescentam outras, Nuevas odas elementales (1956), Tercer libro de odas, (1957) e Navegaciones y regresos que, embora com um título diverso, se constitui o quarto livro das odes. Publicado em 5 de novembro de 1959, reúne cinquenta e três poemas. Cantos que são fruto desse ofício – encher de pão as trevas / fundar outra vez a esperança – que o poeta se propõe e que ele quer absoluto nas odes sem fim, A todo sol, a toda lua [...]/ a todo cão, pássaro, navio / a todo móvel, a todo ser humano.  E a âncora, a cama, o sino caído, as coisas quebradas, a cadeira, o prato, o piano, a melancia, as batatas fritas, um preciso momento do dia no Brasil e em Estocolmo, o cavalo, o gato, o elefante, as gaivotas, o cão, recebem esse orvalho que ele diz ter para todos. Orvalho como oferenda do poeta, tal como é da natureza e que ele irá entrelaçar a seus versos, usufruindo a força de sua expressão poética. Na “Oda al perro”, a palavra orvalho está presente no último verso. Um verso muito breve que acrescenta um elemento inesperado, inusual e sugestivo ao ser que o poeta inventa no final de seu poema, homem e cão reunidos num só animal, de seis patas e uma cauda/ com orvalho.  Epílogo para essa pequena história – o homem a passear no campo com seu cão – sintetizada nos dois versos que formam a segunda estrofe: Em pleno campo vamos / homem e cão. Na tríade – o cenário, os personagens, a ação – em que se constrói o poema, um mundo feérico e iluminado e amoroso. As folhas brilham como se alguém as tivesse beijado / uma por uma, todas as laranjas sobem do chão, um túnel verde e logo / uma planície, uma água intranquila na manhã verde, no mundo umedecido pelas destilações da noite em que as raízes murmuram e o trino e o aroma pairam no ar alaranjado. O poeta está presente – a si próprio se chama o poeta do bosque – e como que preterido por esse companheiro que pergunta sem falar (seus olhos são duas perguntas úmidas, duas chamas líquidas), persegue as abelhas, para, pula sobre a água, urina numa pedra, corre pelo campo e a quem ele não responde. Não pode responder, pois não sabe decifrar enigmas: por que a primavera / não trouxe em sua cesta / nada / para os cães errantes / apenas as flores inúteis. O diálogo não se faz com palavras. Elas sobejam na espontânea comunhão nascida entre o cão a oferecer a ponta de seu focinho e o homem a receber essa expressão de sua ternura. Num e noutro é a alegria de viver que os conduz entre os dedos claros de setembro.  Unidos, cão e homem, homem e cão, num existir de amizade antiga.

Para sempre.

domingo, 17 de novembro de 2002

Jacobina e o Imperador


            De pequena, era doentia nos seus desmaios que, segundo explicação do médico, ficaram sem tratamento, pois os sintomas eram confusos, e não se sabia bem onde terminava a doença e começava a mentira e vice-versa. Menina que se deixava impressionar e não aprendia a escrever, tampouco a ler. No livro de Luiz Antonio de Assis Brasil, Videiras de Cristal (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1990), ela apenas se esboça em breves seqüências a dizer de um gesto ou de suas palavras que somente revelam o que um observador pode constatar: Jacobina, figura principal de um episódio da História do Rio Grande do Sul, ocorrido no fim do século XIX, que teve por palco um núcleo de colonização alemã a nordeste de São Leopoldo e que, ainda hoje, é quase desconhecido. Tendo aprendido com um meio Pastor vidente a ler na Bíblia e a interpretá-la, começou a pregação religiosa entre os doentes que vinham à procura de seu marido, um homem para quem as plantas não possuíam segredo e às quais ele dava razão para existir: uma simples erva que medrava inútil sob a sombra de uma pedra ou no oco apodrecido de uma árvore, se tornava [pela sua arte], a última esperança de um moribundo. Uma vez perguntou à mulher por que, nem sempre, o uso das plantas surtiam o efeito esperado. Jacobina, cada vez mais enfronhada nas páginas da Bíblia, respondeu: Farão efeito se você quiser me ouvir. O Espírito Natural pode te orientar. Ele fala pela minha boca. A partir de então, João Jorge Maurer prescrevia receitas que não mais eram dele, mas, como acreditava, do Espírito Natural que se manifestava por intermédio de Jacobina. Mesclando a cura de doenças, a caridade e promessas messiânicas, ela congregou a seu redor uma população carente e sofredora que, ao ouvi-la, encontrava lenitivo para seus males e esperança de uma vida melhor. Dizendo-se transmissora das palavras de Deus, pregou primeiro a paz e o amor. Mas, suas verdades se opunham àquelas pregadas por homens de coração duro cujas palavras vêm cobertas com a lama das mentiras. E logo apareceram os que a negavam e também os que se sentiam no dever de impedir que falasse. Intolerância  expressa na violência exercida sobre os seus seguidores e que fará com que Jacobina se transforme: Até agora eles só conheciam o coração de uma pomba, vão conhecer a malícia de uma serpente. E intransigências e fanatismos, levando a confrontos, fazem que dela e dos muckers, como eram chamados seus seguidores, emanem as destruições e as mortes. Iguais às destruições e às mortes de que eram vítimas. Sentindo-se acuada, à mercê dos ímpios que a negavam e a queriam destruir e das autoridades, pretendendo manter uma ordem ilusória, ela, ainda que duvidando da eficácia desse pedido – o Imperador vive em seu palácio e nunca nos ouvirá – permitiu enviar à capital do Reino emissários para solicitar ajuda. Redigem o pedido em alemão – a única língua que ela e alguns deles falavam – para ser traduzida e entregue em português, dizendo das agruras sofridas. Inútil precaução. O Imperador, ouvindo seu Ministro, diz aos três colonos, depois de lhes ter apertado a mão, que o papel tomará seu rumo. Diante da tentativa, por parte de um deles, de insistir, o Ministro se interpõe, argumentando que logo teriam notícias, que Sua Majestade iria tomar interesse pelo caso. Inconformados, se retiraram. O Imperador, vendo-os partir, observa que usavam paletós malcortados, sapatos de tacões comidos, bainhas esfiapadas. Já no landau que o conduzia para seu régio almoço, dizia para Gaston d’Orléans, seu augusto genro: Os alemães são pitorescos, aqui no Brasil. Você sabia Gaston [...] que o meu maior sonho seria trazer Wagner para reger no nosso teatro? É uma idéia que não me sai da cabeça. Dizem que ele está precisando de dinheiro”. Desencorajado pelo genro, ainda insistiu: Mas você já pensou Gaston, o Lohengrin aqui pelo próprio autor? O Monarca submergia em recordações. Começou a assobiar baixinho uma ária do amante desventurado, enquanto fechava a cortina do landau, deixando lá fora a poeira, o mormaço, o Brasil.

            No Sul, plantações eram devastadas, propriedades destruídas e homens perdiam a vida nas ações comandadas pelas boas consciências e pelo ódio.

domingo, 10 de novembro de 2002

Dizer de novo


Chega de mansinho e se explicando no primeiro poema do livro, Eu não queria dizer / o que tanto foi dito. Mas, rendido foi pela emoção de amar que o impediu do silêncio, seus versos se sucedem belos, misteriosamente translúcidos. Agrupam-se num pequeno volume, Livro dos amores, publicado pela WS Editor de Porto Alegre, em 1999, Prêmio Açoriano de Literatura do Ano 2000. E cada um deles, breve milagre da expressão amorosa, ora dirigida à mulher amada, ora enovelando-se num dizer que procura se encontrar e que se mostra pleno das riquezas de uma sabedoria assaz rara em alguém nascido há apenas quatro décadas. Médico, psiquiatra, psicoterapeuta, autor de Caderno dos espelhos (1993), Punhais do minuano (1998), Os olhos de Borges (1999), Inventário de Cronos (2002), Jaime Vaz Brasil, é inegável, conhece o ofício de poetar cuja síntese muito bem soube fazer Luiz Antonio de Assis Brasil a respeito deste Livro dos Amores: aqui estão as dúvidas, as incertezas, as certezas transitórias, enfim, aqui estão todas as vacilações e exaltações que todos nós sentimos, mas que exigem um poeta de porte para nos dizer.

E Jaime Vaz Brasil é um poeta de porte que se abriga sob a singeleza das pequenas estrofes, dos versos rimados, de um dizer quase transparente, como no poema “O amor às portas do medo”, para falar de um sentimento tão simplesmente humano como o medo que se enleia ao querer, esperançoso, de outra vez se submeter ao amor. O medo de quem foi marcado, minha alma tem remendos; de quem procura ser prudente e se defender na solidão, Nas portas de minha alma / quero instalar um cadeado / Quero grades e barreiras/e meus caminhos fechados, mas se vê impotente. E então, entrevê negociações que, ingenuamente, usam o verbo impor, no desejo de receber a delicadeza das esponjas e espumas, admitindo, porém, na última estrofe, um fracasso que o verso anterior explica: tenho a alma fraca e tonta e se confessando indefeso face à invasão – outra vez estão batendo – do amor.

            Ainda usando estrofes de dois versos, que neste Livro dos Amores parecem ser da sua predileção, assim como o ritmo perfeito de seus heptassílabos, Jaime Vaz Brasil se aprimora em “O Amor aos Olhos de Náufrago”. Poema em dois tempos em que oito estrofes se fazem de ricas e sugestivas comparações a preparar os dois versos finais. Com sua estrutura paralela e um instigante  jogo de palavras, o poema é admiravelmente construído sem que, no entanto, a sua forma trabalhada esmaeça o sentido lírico do verso, eu chegarei ao teu corpo,  primeiro elemento das sete comparações que formam os três versos iniciais tanto no poema I quanto no II. Na primeira estrofe ao barco na tormenta do poema I, corresponde um barco em águas lentas do poema II. Ou seja, uma palavra é repetida, porém o seu sentido se apresenta transformado pelos seus adjuntos. Ainda na primeira estrofe, ao potro que se solta, do poema I, corresponde o pássaro que pousa, do poema II. Em ambos, a referência a um animal, aquele sabe pleno de juventude e energia, pretendendo a liberdade, o que expressa a delicadeza e que procura o repouso. Na segunda estrofe dos dois poemas, a comparação se completa no segundo verso. E na terceira, não mais se inicia com o advérbio de comparação, mas com a preposição com, dando idéia de modo (com febre de marinheiro, com a fome de cem dias, com a constância dos monges, com assombros de menino). Na quarta estrofe, novamente a troca de palavras (e o desespero de um náufrago depois de um breve esperar, do poema I ao que irá corresponder “e a mansidão de um náufrago/depois de um longo esperar), antecedendo a última, idêntica nos dois poemas: eu chegarei ao teu corpo / como um rio se entrega ao mar. Um pleonasmo que além de exprimir teimosamente um desejo, desnuda a submissão desse “eu” que se quer menor (rio) diante do objeto de seu desejo (mar).

            Neste domínio da forma que prescinde dos grandes recursos retóricos e da grandiloqüência do léxico, o falar de amor de Jaime Vaz Brasil é feito, sobretudo, de uma profunda riqueza lírica o que lhe permite o privilégio de expressar o que tanto foi dito como se fosse a primeira vez.

O Amor aos Olhos de Náufrago

                           I                                                                                                     II

Como um barco na tormenta                                                           Como um barco em águas lentas
como um potro que se solta                                                              como um pássaro que pousa 

como quem grita no escuro                                                               como quem olha ou escuta
e ganha os ecos em si.                                                                       O silêncio dos mosteiros. 

Com febre de marinheiro                                                                  Com a constância dos monges
com a fome de cem dias                                                                   com assombros de menino 

e o desespero de um náufrago                                                          e a mansidão de um náufrago
depois de um breve esperar                                                              depois de um longo esperar 

eu chegarei ao teu corpo                                                                   eu chegarei ao teu corpo
como um rio se entrega ao mar.                                                        Como um rio se entrega ao mar.

domingo, 3 de novembro de 2002

Réquiem



           A Imprensa Oficial do Estado do Paraná publicou neste ano de 2002, na sua coleção “Brasil Diferente” e organizado por André Seffrin, Notícias do Paraná: comentários de Walmir Ayala sobre a arte paranaense (além de duas cartas, uma dirigida a Dalton Trevisan, outra a Curitiba) que apareceram, originariamente, entre 1968 e 1991, sobretudo, no Jornal do Brasil e no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro e em Catálogos de Exposições. Os numerosos textos que fazem parte do livro comentam as obras de artistas paranaenses e a política cultural do estado. Três dentre eles tratam de Hélio Leites. O Hélio Leites que inventou o Assobiódromo Municipal de Curitiba, criou a Associação Internacional de Colecionadores de Botão e a Ex-cola de Samba Unidos do Botão com seus carros alegóricos em miniatura e que merece do crítico gaúcho palavras entusiasmadas: esse feiticeiro que criou, em cima do botão e do assobio, um movimento altamente criativo, o louco e criador e artista e poeta e equilibrado, mestre da poesia, arte postal e comunicação. Um inventor, raríssimo artista brasileiro. Sem dúvida, o incomum senso de humor, a perspicácia  crítica e uma criatividade verdadeiramente sem igual fazem de Hélio Leites um representante do pensar estético brasileiro muito peculiar e muito autêntico. E de uma autenticidade que se mostra, igualmente, no seu lirismo feito do inesperado e do surpreendente, do triste e do melancólico, fruto de um cotidiano convívio com os humanos.

            Há exatamente dez anos, Hélio Leites publicava n’O Estado do Paraná, um pequeno texto com o título de  “Tigre Curitibano”. Poema cujos três primeiros versos, com a objetividade que procura informar, sintetizam um fato que pode ser considerado e, certamente, o foi, por muitos, banal: o ter sido dada a morte a um tigre que fugira do circo e com essa morte, proporcionada à cidade condições para  dormir tranqüila. O verso que segue, porém, ao definir tal sono como um sono de chumbo introduz metaforicamente a noção de responsabilidade pelo crime ecológico que provavelmente as boas consciências justificam tanto quanto amestrar animais selvagens e condená-los, apenas para deleite de alguns, a um cativeiro cruel e injustificável. Também metafóricos os versos seguintes que falam do animal morto e que dorme, verbo a introduzir a palavra pijama que o irá descrever amarelo de listas negras. Logo, o retorno à cidade, desta feita, catalogada como costuma ser, capital ecológica, na qual pinga algo de vermelho o que, sem dúvida, está longe de ser aleatório ou inocente. Depois, a menção à fonte da informação primeira, a manchete dos jornais, dando conta do ocorrido para, então, surgir, o libertar da emoção. Ela cabe nos versos finais em que a expressão jaula vazia tem origem na realidade – o tigre não mais a habita – e num fantasioso desejo – o tigre voa vivo. Um voar impossível e um impossível estar vivo para a vítima da urbana caçada inglória, travada no asfalto. Mas, na ausência da vida, a sua imagem persiste na recriação do poeta que não deixa esquecer a triste vida desse tigre enjaulado e a triste morte que lhe coube.

domingo, 27 de outubro de 2002

As flores. 2



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Como efêmeras tréguas, as flores. 

  
          O desejo de alguns dos espanhóis que se incorporaram à expedição de Juan Núñez de Prado de se enraizar nas terras do Continente é representado no romance de Carlos Drougett que lhes narra os feitos, pelo apego que eles têm às flores, plantadas na cidade recém fundada. Um sentimento que dará origem a confrontos cujo preço será extremamente alto para o derrotado: a vida. Magistralmente, o autor chileno enovela a metáfora da dominação ao lirismo que se expressa num punhado de flores que não pode ser abandonado. Como, também, irá entrelaçar as flores ao cenário e a alguns personagens. Ao cenário, como breves pinceladas a sugerir um toque de cor, embora apenas duas vezes a cor das flores – vermelho e amarelo – seja mencionada. Assaz rara, igualmente, a presença de adjetivos ou de espécies que as qualifiquem. Não são descritas, nem louvadas e a função que lhes cabe, então, é a de dar vida ao relato tanto quanto os sons e o fervilhar de ações que o povoam. Assim, as flores rebentam nos recantos sombrios, se inclinam cerimoniosas na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, ascendem pelos troncos, se abrem enormes, vermelhas, ou amarelas, se mostram vermelhas, curiosamente sensuais e transparentes, exalando, por vezes, seus perfumes acres ou agradáveis ou de flores ligeiramente molhadas. E se mostra evidente, nessa lógica apaixonada que sempre conduz os escritos de Carlos Droguett, estar a sua função maior nas seqüências comprometidas com os personagens: os índios, submetidos ao trabalho, seja ele tão leve, quem sabe agradável, de recolher vasos de flores; o padre Cedrón, caminhando entre os enfermos a lhes dizer palavras alegres,  simplesmente de esquecimento, simplesmente de esperanças, ensartando nelas o sol, o ar, as flores; o padre Carvajal, esperando ver a primavera irrompendo nas rosas. Sobretudo, comprometida com os seus atos. Quando o padre Carvajal conta sobre os seus dias em Barco 1, já abandonada, onde ficara para enterrar os mortos, lembra que, ao subir as escadas da forca para retirar os soldados  que dela pendiam e lhes dar sepultura, um deles, Alonzo del Arco, rescendia a flores frescas, a flores vivas. E, Juan Núñez de Prado, antes de matar o soldado que o acusara de estar com medo, de estar derrotado ao argumentar que o rei precisa de soldados, cada vez mais soldados e cavalos e cruzes vê as cruzes enterradas no barro e nas quais se alvoroçavam, agitadas pelo temporal uns manojos de flores, flores podres e desfeitas [...]. E teria desejado conversar, explicar-se, inquirir, mas o soldado, sentindo-se ameaçado, começa a correr. Ele o persegue e de cima do cavalo lhe golpeia as costas e o lança contra uns lençóis que cheiravam a flores, a capim, a sol morno, a brisa da madrugada, onde, atado como estava, se debatia para ocultar o rosto: era donairoso e jovem, de traços finos, audazes e ingênuos. Dar-lhe a morte não lhe custou. Sim, suportar a angústia que lhe sobreveio. Olhou para os índios que trabalhavam, carregando as carretas para partir. Olhou para os soldados que, levando as mãos aos cinturões conferiam se aí estavam as adagas. Olhou para os galhos das laranjeiras que se vergavam sob o ar quente e que parecia lhe estivessem fazendo sinais para que não esquecessem de nada, nem das mesas, nem das escadas da forca, nem dos vasos de flores. Para que – dir-se-ia – o universo da Conquista continuasse a ser fiel ao modelo que o guiava: os índios a serviço dos brancos. Os capelães no exercício das obras pias. O capitão no uso e abuso de seu pleno poder de arbítrio.

            Como efêmeras tréguas, as flores.

domingo, 20 de outubro de 2002

E as flores.1



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Para muitos dos espanhóis, nas flores é reencontrar a pátria, mas, também, outra vez,  perdê-la, submissos às vontades maiores.

            Os cavalos se moveram em pouco e como se desejassem esconder aquilo. O soldado fora morto pelo capitão, em pleno sol, por ter ousado retrucar: tu puseste na cadeia todos aqueles que desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu somente queres homens a cavalo, agarrados a seus arcabuzes e às adagas, somente queres soldados. Dos duzentos que seguiram Juan Núñez de Prado, nem todos, no entanto, queriam ser homens de armas. Muitos haviam deixado a velha Espanha, buscando o que nela não poderiam ter: algo de seu. E a casa construída na cidade recém fundada, representava o lugar onde se enraizar. Entre essa vontade e a do capitão, dominado pelo medo e pelo afã de seguir adiante, se inserem as dissidências que levam à morte, decretada em nome das justiças. Porque, aos que desejam ficar, aos que não querem ir, os capitães argumentam  sem convencer e, então, usam de suas leis que dizem ser as do rei e as de Deus. E exclama Guevara: se não sabem abandonar virilmente uns vasos com flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como compreendes, senhor, que esta tropa de ladrões e assassinos tenha embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? E diz Griego: olha senhor esse preso que anda tresnoitado para a sua cela, é um bom homem, um perfeito cristão, conhece seu dever com Deus e seu oficio com o rei, seu trabalho é agora sofrer, porque, senhor, nós temos pressa e ele não, nós pegamos o martelo e ele a pazinha do jardim, se dirige à prisão belamente esperançoso, a esperar que apodreçam as cordas e ele fique livre e boceje expulsando o sopor e o cansaço e as más lembranças e volte a cuidar de suas rosas, porque nós, não carregamos flores, nem os crisântemos, nem a fruta, nem a queda d’água nem o céu [...]. E fala Ardiles para o soldado: olha, Luciano, estamos desfeitos mas faremos justiça com os traidores. Choras porque os soldados destripam umas sacadas e os cavalos pisoteiam umas flores? Por isso queres te rebelar contra o rei, o vice-rei e o capitão? E conclui Juan Núñez de Prado: somos capazes de levar uma cidade nas costas, o mundo novo sobre os ombros, que eles chorem, eu não choro, eu não tenho vasos de flores na minha sacada, eu não tenho sacada, eu não plantei limoeiros, nem amendoeiras, nem pessegueiros, nem alecrim, nem rosas. Mas, ou porque essas flores cultivadas significam, para muitos, a real posse da terra, ou porque seja verdade o que diz um dos capitães a respeito dos que se apegam à terra – cravam primeiro um prego e logo plantam uma flor – o olhar de Juan Núñez de Prado, ao se deter sobre os móveis, as roupas, os pedaços da cidade, freqüentemente recai sobre as flores que estão perto das portas e janelas atiradas no chão, junto com as roupas espalhadas ou pendendo das janelas ou se lançando para o alto. Ainda que pareça incoerência, é com flores que ele imagina a cidade assentada: as ruas silenciosas, as sacadas cheias de flores e de romanças e são flores que também lhe dão razões para a mudança da cidade. Uma, para assentá-la definitivamente, para rapidamente por em ordem suas praças, por em ordem seus edifícios, deixar erguida a torre da igreja, esparramar umas pombas, abrir uns vasos de flores. Outra, para reafirmar a necessidade premente de levá-la para um novo lugar, pois haverá o dia em que chegarão ginetes furiosos, arremessando nas sacadas cheias de flores para desfazê-las.



Tais conflitos que, em meio a muitos outros, surpreendem apenas por esse inesperado apego às flores – na verdade mencionadas,  só as rosas, os cravos, as violetas e os crisântemos – ao serem regidos pelo desejo de repetir no Continente algo de um universo que foi deixado para trás – a casa espanhola com suas sacadas e suas flores – não significam somente a expressão do comovente, e tão intensamente manifestado, sentimento do expatriado, mas, também, motivo para delinear as relações entre os que arbitrariamente decidem e os que às decisões sempre devem se submeter. Um tema certamente caro a Carlos Droguett que, sabe-se, não ser um autor que use do lirismo para simplesmente falar de flores.

domingo, 13 de outubro de 2002

Com o vento


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Com o vento, os testemunhos.


            Havia vento, soprava o vento, o vento soprou furioso, o vento ainda soprava contido, não havia vento breves expressões que, juntamente com outras a darem conta dos sons, dos odores, das cores do dia e da noite, do mover-se dos homens e dos animais, tornam pleno de vida o relato desse mundo da conquista do Continente, no ano de 1570. No entanto, no tumultuado caminho que Juan Núñez de Prado percorre com os capitães, os duzentos soldados e os quinhentos índios, mais os três capelães, se envolvem os rios, as matas, os cerros, as planícies e nas relações que se estabelecem entre os homens e a natureza advém uma espontânea proximidade. Assim, mais do que uma notação de cenário ou das ações que neles se concretizam, o vento envolve personagens, animais, objetos numa presença que adquire contornos bem precisos como precisas funções no relato. Poucos termos o qualificam – gelado, matinal, quente, alto e primaveril – salvo no fragmento em que o padre Carvajal ao chegar ao segundo assento da cidade, vindo da que fora abandonada onde havia permanecido para enterrar os mortos, lembra o momento em que os retirou da forca e os estendeu no chão e do vento que chegava penetrante, um pouco úmido, mas agradável, impregnado no perfume das flores e da água do rio. Imagens de morte e de vida que se contrapõem e que serão reforçadas quando ele diz que o vento lhe trazia, também, o cheiro da fumaça, ainda a queimar os campos semeados: um sutil encadear de seqüências, dizendo uma, dos odores simples e puros da natureza e, outra, daquele provocado pelo homem no seu afã de destruição. Tanto quanto o céu e a chuva, o vento conduzirá, então, no mundo ficcional de El hombre que trasladaba las ciudades, detalhes narrativos e significados em acorde com a intenção maior do romance: não permitir a trégua que possa deixar no esquecimento o proceder ambíguo e cruel na conquista do Continente. Como sujeito de um verbo que o relaciona com os seres povoadores do romance e cujos complementos lhe fixam detalhes, o vento terá uma função narrativa: alvoroçar o cabelo do padre Cedrón ou as roupas do padre Carvajal, polir os ombros do capitão quando se apóia na janela de costas para a praça, empurrar os cavalos e bater-lhe nas garupas, levantar a roupa molhada, folhear os livros pousados sobre os móveis, incorporar e levar perfumes, ramos de flores, brisas delgadas e persistentes.

            Mas, servir-se de algo tão simples como a ação do vento, também pode enriquecer fragmentos do relato na reafirmação teimosa de que a lei do mais forte é sempre a melhor. Num deles, dois espanhóis recusando-se a deixar a cidade, foram mortos dentro de casa e ali ficaram. Na ânsia de lhes dar sepultura, assim como aos enforcados, o padre Carvajal desprega as portas e janelas que haviam sido clausuradas. No terrível relato do que aconteceu, se insere a breve frase o vento agitou o teto, fazendo vibrar as tábuas soltas: as que permitiram aos soldados atirar nos que se recusavam a partir. Outro breve episódio é o do soldado que está trabalhando na sua casa quando outros lhe rendem os braços, sem explicações, e o esbofeteiam e destroem janelas e paredes e ele vê a porta se açoitando contra o vento enquanto passavam soldados amarrados, empurrados pelas armas. Ainda, o que descreve o vôo dos corvos, descendo até as forcas vazias cujas cordas o vento agita contra as escadas do patíbulo. Ou o que narra a chegada do capitão Ardiles na cidade que está prestes, outra vez, a ser mudada de lugar. Chega junto com os cavalos magros e cheios de terra, e os ginetes magros e cheios de terra, nesse silêncio que revela as longas caminhadas, com suas roupas e botas a emanar um ar lúgubre e enfermiço. Diante das mulas e lhamas secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos e umas bandeirinhas desbotadas e desfiadas, brilhando no sol, Juan Núñez de Prado quase soluça, pensando no vento, no sol, na chuva, na fome dos quais, certamente, eles tivessem sido as vítimas. Como se, atribuindo aos elementos esse estar na origem das misérias e dos sofrimentos, ele, assim, se inocentasse das culpas que lhe cabiam nessa trajetória marcada pela destruição.

domingo, 6 de outubro de 2002

Na chuva


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.
           

Nas quarenta carretas, eles levam a cidade. Sob uma árvore, Juan Núñez de Prado as vê passar,  balançando-se com suavidade. Está confiante, cavalgando alegre quando as gotas de chuva começam a lhe molhar o rosto. Longe, no alto das montanhas, os relâmpagos e os trovões e perto dele, o capelão grita feliz que é a primeira chuva ao que ele retruca, arrogante, que é a primeira mudança. Chove a noite inteira sobre o rosto dos índios e sobre os rostos curtidos, endurecidos dos soldados, sobre os cavalos que troteiam livres, sobre as carretas que se perdem no barro. Chove muito e por muito tempo e perdem a noção dos dias em que estão avançando sob a chuva. É, então, sob a chuva, que os soldados começam a descarregar as roupas e os móveis e que os capitães olham para Juan Núñez de Prado, fazendo com que perguntasse, irado, se iriam, com tanta chuva, tirar das carretas a cidade. Mas, um lhe dizia para olhar os morros; outro lhe afirmava que logo iria parar de chover; insistindo, todos, que esse era o lugar. Desmontaram e foram chamando os soldados em meio ao barulho da chuva. Juan Núñez de Prado, sem dizer nada, olha os móveis ensopados e as portas e as janelas e os montes de roupa, desejando adivinhar quantas carretas se haviam perdido e olha para o padre Cedrón, dormindo, profundamente, sem se proteger da intempérie. Desperta assustado quando a água que escorre, interminável, sobre os móveis esparramados, lhe açoita o rosto. Padre, diz o capitão, esta é minha chuva, esta é sua chuva, nossa chuva, padre. Não temos arco-íris nem pomba, só a chuva é nossa mensageira de violenta paz, não podemos prosseguir sob o temporal se não quisermos que a cidade se desintegre e vá embora rio abaixo, padre, vamos ficar, padre, este é o lugar.

            O lugar para a cidade. O lugar dos trabalhos renovados, das efêmeras imagens que se oferecem ao olhar e dos cruéis incidentes a marcar, ainda, uma vez, a trajetória da Conquista: é o fogo aceso, crepitando sob as tendas, o barulho de uma panela a ferver, o despregar de tábuas, o desamarrar de cordas, a batida do martelo nos pregos. É o galo vermelho, amarfanhado pela chuva e pelo frio, a ovelha que balia humilde, parada no escuro [...], sua lã triste a ressaltar na penumbra, o focinho palpitando assustado e faminto, o cavalo bebendo um pouco da chuva, o reflexo dos móveis, das janelas, das portas, das sacadas, nos charcos, o rastro de água, deixado pela árvore quando sacudida pelos soldados, o gotejar entre as folhas. Um universo onde se inscrevem, também, inesperados, os episódios com os soldados feridos. Um deles, de muleta, se deixa ver, caminhando longe de todos, rindo. Detém-se para olhar para o capitão que se admira de que tenha seguido com a cidade, pois a ordem havia sido de enforcar os coxos e os velhos. Quando Juan Núñez de Prado e o capelão olham para ele, perde a cor, sob a chuva que deslizava miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha uma cara audaz e provocativa mas estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Juan Núñez de Prado com a espada em punho quer alcançá-lo, porém é impedido pelo padre e por seus capitães e o soldado, pulando entre os cães que o perseguem, some na chuva, tateando a escuridão com a muleta.

            Como soe acontecer no relato de Carlos Droguett, o episódio parece terminado, logo seguido por outro e só irá reaparecer muitas páginas adiante. No caso, exatamente vinte, quando o padre Cedrón, no dia seguinte, sai para as aforas do acampamento, deixando para trás os escombros disformes e desagradáveis, desolados e trágicos da cidade. Após subir umas rochas e correr e se cansar, se depara com o homem caído, a muleta ali perto, no chão. Lembra dele, de como haviam impedido que o capitão lhe fizesse mal, de como ele se havia defendido com a muleta, num gesto de audaz provocação ou como uma carta de apresentação ou uma pobre pueril desculpa, de como se afastara pelos lados do bosque e se distanciara cada vez mais sob a chuva. O que, na verdade, pouco lhe valeu, pois ali estava, a cabeça apoiada numa pedra, o peito ferido, o uniforme e a bota em frangalhos.

            Submersos nas zonas de sombra da narrativa os que respondem por sua morte, as razões que eles mesmos se atribuem e o momento da execução. Recurso usual na ficção de Carlos Droguett a eludir pormenorizações cruéis de cruéis e injustos procedimentos, mas, assim, tornando maior  o seu real e profundo significado. 

...ficavam contentes com a chuva que vinha lavá-los, limpá-los de feias ações e desafio, de tentações e traições e pesadelos.

domingo, 29 de setembro de 2002

Sob o céu

Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.


          O capítulo segundo, “El segundo translado”, se inicia com Juan Núñez de Prado e seus capitães e mais os índios e as carretas, movendo-se em busca do novo lugar onde assentar a cidade. Em meio ao cansaço, ao sono e ao desalento, já haviam perdido, os capitães, a conta dos dias desse caminhar. Juan Núñez de Prado calcula que são três, quatro, sete dias e há um momento em que diz: caminhamos sob este céu negro e sem Deus, um céu implacável. Dele cai, sem parar, a chuva que os irá deter. Logo dirá um dos capelães: É a vontade do céu [..] esta chuva é presente do céu para que não façamos mais barbaridades e libertemos aqui mesmo a cidade que levamos como que roubada. É o enunciar do fado, que, no entanto, se tornará real, a partir da vontade dos homens: sob a chuva, irão descarregar a cidade das carretas, tornar a traçar-lhes as ruas e enraizar suas casas. Nessa tarefa empreendida, o céu não mais como vontade divina, mas como esse espaço indefinido, onde se movem os astros, estará presente ou na expressão do narrador que o define como imenso, gelado e hostil, escuro e iluminado, azul e tenso, quase escuro, enorme, mais aberto, mais próximo. Ou pelo olhar do personagem Juan Núñez de Prado, ou um ou outro de seus capelães. Eles o percebem negro, duro, escuro, desagradável, nublado, revolto e nublado, alto e distante, violeta, distante e frio, tenso e cálido, negro, indecifrável, implacável, alto e sereno, excessivamente limpo, cálido e cheio de fumaça, brilhando tranqüilo e puro. Num ou noutro caso, os adjetivos que o qualificam pouco falam de sua cor ou tonalidade (apenas azul, horrivelmente azul,  violeta, escuro, negro) ou de algo referente a seu aspecto (enorme, alto, sereno, limpo, distante, cheio de fumaça). São adjetivos que, mormente, lhe conferem características próprias dos humanos duro, desagradável, indecifrável, implacável, hostil, frio, distante, numa antropomorfização que se mostra, salvo na exceção dos adjetivos cálido e sereno, sobretudo hostil e sem adornos. Apenas duas breves referências à presença das nuvens ou a sua ausência (não havia nuvens no céu) e outra às estrelas que se amontoavam como pedregulhos sujos, ou à figura do corvo e de pássaros negros, diluída na imensidão. Como um elemento do cenário que, por vezes, se ilumina, em que atuam os homens de Juan Núñez de Prado, o céu não é somente receptor de seus olhares expectantes e dos sons que se desgarram desse universo – queixas, relinxos lastimosos dos cavalos, bramir do gado, palpitar dos sinos – mas, também, parte do drama, nesses diversos papéis que lhe são atribuídos. Quando alguém pergunta quando acabaria de ser o céu hostil e frio; quando outro percebe que pelo céu é rechaçado; quando imaginam que por ser duro  irá deter o ódio dos agressores. Papéis que se adensam ao se inscreverem na incerteza dos homens. A cidade não fora, ainda concluída e já queriam levá-la adiante, para outras paragens.

          Diz o capitão Guevara: tenho horror dos cerros e das rochas, sinto que nós e a cidade estamos ficando afogados entre eles, nos falta o ar, o céu está muito alto e distante [...]. Palavras que exacerbam as razões de Juan Núñez de Prado nas suas angústias pessoais e no que ele decide ser a vontade do rei: não quer espanhóis sedentários, mas aventureiros, infelizes e sem raízes. E responde: [...] agora somente sei que devemos ir, levar a cidade, o quanto pudermos, alguns edifícios radiosos, as melhores ruas, este sol, esse céu, talvez uns gritos de desespero nos façam falta para não nos sentirmos tão abandonados. Porém, diante dos que resistem à mudança e querem se fixar e são presos, maltratados, executados, Antonio Griego, soldado ou capitão, por sua vez, decide: nós não carregaremos as fontes nem o céu, o céu fica aqui com eles.

            Como dispunham da terra e de tudo o que ela continha, os conquistadores que vieram pra se apossar do Continente, talvez, acreditassem serem, também, donos do céu, podendo, assim, deixá-lo para trás ou levá-lo para onde bem lhes aprouvesse.