O terceiro
capítulo, “O Homem”, da segunda parte de Os Sertões se inicia com a sua
frase mais conhecida e mais citada: O
sertanejo é, antes de tudo, um forte. Introdução ao longo texto em que
Euclides da Cunha o define a partir da sua aparência física, de suas ações e de
uma visão de mundo, estreitamente relacionada à paisagem que o rodeia e lhe
determina o modo de ser e as condições de vida. E, no intuito de completar-lhe
o tipo, recorre, considerando-o a sua antítese, à figura do gaúcho. Um gaúcho
que, antes de mais nada, ele explicita
ser do sul e ao qual dará um
perfil que estará em acorde com aquele que, literariamente, lhe tem sido feito,
ao longo dos anos, e não somente no Brasil, como na Argentina e no Uruguai.
Nada irá dizer sobre o seu aspecto físico – na verdade, o gaúcho quase sempre é
descrito por suas idiosincrasias – quando, ao contrário, não poupa o sertanejo
de seus adjetivos desmerecedores. Como soe acontecer nos textos que tratam do
gaúcho e como o fez com o sertanejo, não o dissocia de seu meio: plainos sem fim, natureza carinhosa que o encanta, natureza deslumbrante que o aviventa, o meio que lhe irá moldar o
caráter, definir os afazeres, influenciar-lhe o vestir. A vida, que no dizer de
Euclydes da Cunha, lhe decorre farta e
variada, não lhe dá tristezas e nela o trabalho significa uma diversão. O
rodeio, uma festa diária, realizada
nas mangueiras – marcando o gado, curando-lhe as bicheiras, apartando os que
irão para a charqueada, escolhendo os que serão domados – ou em pleno campo,
perseguindo o gado esquivo, em meio ao alarido
e à alacridade de uma diversão tumultuosa.
Na luta é valente, inimitável, lançando-se aos embates com
a despreocupação soberana pela vida.
Sua vestimenta, versus a do vaqueiro, toda de couro, como uma armadura, é um traje de festa que se completa no arreiamento complicado e espetaculoso,
fazendo com que bem lhe assentem os qualificativos de vitorioso, jovial e forte.


Abundantes
e laudatórios, esses adjetivos que o definem tanto quanto os vocábulos sul rio-
grandenses, remetem às asserções de Wilson Martins, no artigo publicado em
1952, na Anhembi (número 24), de São Paulo, “O estilo de Euclides da
Cunha”, sobre as constantes marcas estilísticas de Os Sertões: a
adjetivação e o exacerbado gosto pelo léxico opulento de nossa língua. A adjetivação sobre a qual se funda, no
dizer do articulista, o estilo de Euclides da Cunha, presença constante junto
aos substantivos e no seu acúmulo, pois ele
não recua de os amontoar, uns atrás dos outros
[...]. E o uso persistente e predileto
das palavras raras, termos técnicos, palavras arcaicas ou de uso pouco comum, modismos
do velho português e também da linguagem puramente oral dos grupos isolados do interior.
No
entanto, os adjetivos usados por Euclides da Cunha para definir o gaúcho como
tipo social – aventureiro, jovial (pleonástico), diserto, valente
(pleonástico), fanfarrão, despreocupado, vitorioso, inimitável – em nada
diferem daqueles que estão presentes nos textos ensaísticos ou ficcionais que
procuram explicá-lo ou fazem dele um personagem de contos e romances, tema de
poemas. Assim, os trabalhos em que se lança – galope fechado, corcovear
raivoso, parar rodeio, encalçar os bois esquivos, fazer tombar o touro alçado,
marcar e apartar o gado; assim, sua vestimenta: pala, bombachas, esporas de prata, lenço de seda, encarnado, sombreiro,
guaiaca e botas russilhonas. Tampouco diferem os termos específicos
utilizados, cujo registro se encontra no Vocabulário sul rio-grandense,
da Editora Globo de Porto Alegre e no Dicionário de Regionalismos do Rio
Grande do Sul, de Zeno e Rui Cardoso: chilenas,
coxilhas, mangueira, peleador, poncho, redomão, sanga, tambeiros. Entre eles, na edição de Os
Sertões (1946, da Francisco Alves), baguaes,
bombachas, entreveros, estância, guaiacas, parar rodeio, pealador, pingo, russilhonas, como o próprio termo gaúcho, aparecem em itálico. Curioso, porém, o emprego de certos
termos: disparada, por exemplo,
indicando corridas de cavaleiro; com esse sentido, porém, não possui registro
nos dicionários citados onde consta como dispersão de animais ou da tropa; o
adjetivo inseparável, qualificando pala, uma prenda de vestir, semelhante
ao poncho, mas que, sendo de tecido mais leve, não abriga dos rigores do
inverno; chimarrão amargo, pois o uso
corrente é chimarrão (o que se prepara sem açúcar), também chamado de
mate-amargo e que, na sua expressão, resultou num pleonasmo; e, essa outra em
que generaliza assado com couro como
sendo um alimento do cotidiano. Igualmente curioso, dizer que o cavalo sócio inseparável dessa existência
algo romanesca é quase objeto de luxo,
expressão que dificilmente caberá num texto sobre o gaúcho ficcional ou não. Porque
ser quase objeto de luxo está longe
de oferecer a verdadeira dimensão do que une o gaúcho ao seu cavalo.
Ou
seja, o uso que faz dos adjetivos e dos termos específicos para traçar o perfil
do gaúcho, permite observar que Euclides da Cunha apenas compartilha dos que já
existem em outras páginas – e elas são numerosas – sobre o gaúcho. Se a
paisagem do Rio Grande do Sul e o gaúcho não fizeram parte de sua vivência –
como ocorreu com outras paisagens e outros tipos humanos do Brasil – é um
motivo a mais para considerar que um e outro se lhe tornaram conhecidos através
de textos. E nos quais a figura do gaúcho se mostra, e assim o percebeu
Euclides da Cunha, muitas vezes, verdadeiramente, cativante. No entanto, quando
o seu objetivo primeiro era falar sobre o sertanejo, que leituras e razões o
teriam levado a sucumbir à sedução dessa figura mítica rio-grandense, da qual
somente se louvam as virtudes, e incorporá-la, a seu modo e com o seu talento,
ao universo de Os Sertões, não recusando, para isso, em se adentrar em
trilhas já há tanto e por muitos percorridas?










