domingo, 6 de outubro de 2002

Na chuva


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.
           

Nas quarenta carretas, eles levam a cidade. Sob uma árvore, Juan Núñez de Prado as vê passar,  balançando-se com suavidade. Está confiante, cavalgando alegre quando as gotas de chuva começam a lhe molhar o rosto. Longe, no alto das montanhas, os relâmpagos e os trovões e perto dele, o capelão grita feliz que é a primeira chuva ao que ele retruca, arrogante, que é a primeira mudança. Chove a noite inteira sobre o rosto dos índios e sobre os rostos curtidos, endurecidos dos soldados, sobre os cavalos que troteiam livres, sobre as carretas que se perdem no barro. Chove muito e por muito tempo e perdem a noção dos dias em que estão avançando sob a chuva. É, então, sob a chuva, que os soldados começam a descarregar as roupas e os móveis e que os capitães olham para Juan Núñez de Prado, fazendo com que perguntasse, irado, se iriam, com tanta chuva, tirar das carretas a cidade. Mas, um lhe dizia para olhar os morros; outro lhe afirmava que logo iria parar de chover; insistindo, todos, que esse era o lugar. Desmontaram e foram chamando os soldados em meio ao barulho da chuva. Juan Núñez de Prado, sem dizer nada, olha os móveis ensopados e as portas e as janelas e os montes de roupa, desejando adivinhar quantas carretas se haviam perdido e olha para o padre Cedrón, dormindo, profundamente, sem se proteger da intempérie. Desperta assustado quando a água que escorre, interminável, sobre os móveis esparramados, lhe açoita o rosto. Padre, diz o capitão, esta é minha chuva, esta é sua chuva, nossa chuva, padre. Não temos arco-íris nem pomba, só a chuva é nossa mensageira de violenta paz, não podemos prosseguir sob o temporal se não quisermos que a cidade se desintegre e vá embora rio abaixo, padre, vamos ficar, padre, este é o lugar.

            O lugar para a cidade. O lugar dos trabalhos renovados, das efêmeras imagens que se oferecem ao olhar e dos cruéis incidentes a marcar, ainda, uma vez, a trajetória da Conquista: é o fogo aceso, crepitando sob as tendas, o barulho de uma panela a ferver, o despregar de tábuas, o desamarrar de cordas, a batida do martelo nos pregos. É o galo vermelho, amarfanhado pela chuva e pelo frio, a ovelha que balia humilde, parada no escuro [...], sua lã triste a ressaltar na penumbra, o focinho palpitando assustado e faminto, o cavalo bebendo um pouco da chuva, o reflexo dos móveis, das janelas, das portas, das sacadas, nos charcos, o rastro de água, deixado pela árvore quando sacudida pelos soldados, o gotejar entre as folhas. Um universo onde se inscrevem, também, inesperados, os episódios com os soldados feridos. Um deles, de muleta, se deixa ver, caminhando longe de todos, rindo. Detém-se para olhar para o capitão que se admira de que tenha seguido com a cidade, pois a ordem havia sido de enforcar os coxos e os velhos. Quando Juan Núñez de Prado e o capelão olham para ele, perde a cor, sob a chuva que deslizava miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha uma cara audaz e provocativa mas estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Juan Núñez de Prado com a espada em punho quer alcançá-lo, porém é impedido pelo padre e por seus capitães e o soldado, pulando entre os cães que o perseguem, some na chuva, tateando a escuridão com a muleta.

            Como soe acontecer no relato de Carlos Droguett, o episódio parece terminado, logo seguido por outro e só irá reaparecer muitas páginas adiante. No caso, exatamente vinte, quando o padre Cedrón, no dia seguinte, sai para as aforas do acampamento, deixando para trás os escombros disformes e desagradáveis, desolados e trágicos da cidade. Após subir umas rochas e correr e se cansar, se depara com o homem caído, a muleta ali perto, no chão. Lembra dele, de como haviam impedido que o capitão lhe fizesse mal, de como ele se havia defendido com a muleta, num gesto de audaz provocação ou como uma carta de apresentação ou uma pobre pueril desculpa, de como se afastara pelos lados do bosque e se distanciara cada vez mais sob a chuva. O que, na verdade, pouco lhe valeu, pois ali estava, a cabeça apoiada numa pedra, o peito ferido, o uniforme e a bota em frangalhos.

            Submersos nas zonas de sombra da narrativa os que respondem por sua morte, as razões que eles mesmos se atribuem e o momento da execução. Recurso usual na ficção de Carlos Droguett a eludir pormenorizações cruéis de cruéis e injustos procedimentos, mas, assim, tornando maior  o seu real e profundo significado. 

...ficavam contentes com a chuva que vinha lavá-los, limpá-los de feias ações e desafio, de tentações e traições e pesadelos.

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