Em 1973, a Noguer,
de Barcelona, publicou El hombre
que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade
histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais
belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a
narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan
Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile
que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três
vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se
iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros
trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez,
mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.
Nas quarenta
carretas, eles levam a cidade. Sob uma árvore, Juan Núñez de Prado as vê passar,
balançando-se com suavidade. Está
confiante, cavalgando alegre quando as gotas de chuva começam a lhe molhar o
rosto. Longe, no alto das montanhas, os relâmpagos e os trovões e perto dele, o
capelão grita feliz que é a primeira chuva ao que ele retruca, arrogante, que é
a primeira mudança. Chove a noite inteira sobre o rosto dos índios e sobre os
rostos curtidos, endurecidos dos
soldados, sobre os cavalos que troteiam livres, sobre as carretas que se perdem
no barro. Chove muito e por muito tempo e perdem a noção dos dias em que estão avançando
sob a chuva. É, então, sob a chuva, que os soldados começam a descarregar as
roupas e os móveis e que os capitães olham para Juan Núñez de Prado, fazendo com que
perguntasse, irado, se iriam, com tanta chuva, tirar das carretas a cidade.
Mas, um lhe dizia para olhar os morros; outro lhe afirmava que logo iria parar
de chover; insistindo, todos, que esse era o lugar. Desmontaram e foram
chamando os soldados em meio ao barulho da chuva. Juan Núñez de Prado, sem
dizer nada, olha os móveis ensopados e as portas e as janelas e os montes de
roupa, desejando adivinhar quantas carretas se haviam perdido e olha para o
padre Cedrón, dormindo, profundamente, sem se proteger da intempérie. Desperta
assustado quando a água que escorre, interminável, sobre os móveis esparramados,
lhe açoita o rosto. Padre, diz o capitão, esta é minha chuva, esta é sua
chuva, nossa chuva, padre. Não temos arco-íris nem pomba, só a chuva é nossa
mensageira de violenta paz, não podemos prosseguir sob o temporal se não
quisermos que a cidade se desintegre e vá embora rio abaixo, padre, vamos
ficar, padre, este é o lugar.
O
lugar para a cidade. O lugar dos trabalhos renovados, das efêmeras imagens que
se oferecem ao olhar e dos cruéis incidentes a marcar, ainda, uma vez, a
trajetória da Conquista: é o fogo aceso, crepitando sob as tendas, o barulho de
uma panela a ferver, o despregar de tábuas, o desamarrar de cordas, a batida do
martelo nos pregos. É o galo vermelho, amarfanhado
pela chuva e pelo frio, a ovelha
que balia humilde, parada no escuro [...],
sua lã triste a ressaltar na penumbra,
o focinho palpitando assustado e faminto,
o cavalo bebendo um pouco da chuva, o reflexo dos móveis, das janelas, das
portas, das sacadas, nos charcos, o rastro de água, deixado pela árvore quando
sacudida pelos soldados, o gotejar entre as folhas. Um universo onde se
inscrevem, também, inesperados, os episódios com os soldados feridos. Um deles,
de muleta, se deixa ver, caminhando longe de todos, rindo. Detém-se para olhar
para o capitão que se admira de que tenha seguido com a cidade, pois a ordem
havia sido de enforcar os coxos e os velhos. Quando Juan Núñez de Prado e o
capelão olham para ele, perde a cor, sob a chuva que deslizava miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha uma cara audaz e
provocativa mas estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo,
levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Juan Núñez de
Prado com a espada em punho quer alcançá-lo, porém é impedido pelo padre e por
seus capitães e o soldado, pulando entre os cães que o perseguem, some na
chuva, tateando a escuridão com a muleta.
Como
soe acontecer no relato de Carlos Droguett, o episódio parece terminado, logo
seguido por outro e só irá reaparecer muitas páginas adiante. No caso,
exatamente vinte, quando o padre Cedrón, no dia seguinte, sai para as aforas do
acampamento, deixando para trás os
escombros disformes e desagradáveis,
desolados e trágicos da cidade. Após subir umas rochas e correr e se
cansar, se depara com o homem caído, a muleta ali perto, no chão. Lembra dele,
de como haviam impedido que o capitão lhe fizesse mal, de como ele se havia
defendido com a muleta, num gesto de audaz provocação ou como uma carta de
apresentação ou uma pobre pueril desculpa, de como se afastara pelos lados
do bosque e se distanciara cada vez mais
sob a chuva. O que, na verdade, pouco lhe valeu, pois ali estava, a cabeça
apoiada numa pedra, o peito ferido, o uniforme e a bota em frangalhos.
Submersos
nas zonas de sombra da narrativa os que respondem por sua morte, as razões que eles
mesmos se atribuem e o momento da execução. Recurso usual na ficção de Carlos
Droguett a eludir pormenorizações cruéis de cruéis e injustos procedimentos,
mas, assim, tornando maior o seu real e
profundo significado.
...ficavam contentes com a chuva que vinha lavá-los,
limpá-los de feias ações e desafio, de tentações e traições e pesadelos.

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