Em 1973, a Noguer,
de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade
histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais
belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a
narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan
Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile
que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três
vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se
iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros
trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez,
mudá-la de lugar. Com o vento, os testemunhos.
Havia vento, soprava o vento, o vento soprou furioso, o
vento ainda soprava contido, não havia
vento breves expressões que, juntamente com outras a darem conta dos sons,
dos odores, das cores do dia e da noite, do mover-se dos homens e dos animais,
tornam pleno de vida o relato desse mundo da conquista do Continente, no ano de
1570. No entanto, no tumultuado caminho que Juan Núñez de Prado percorre com os
capitães, os duzentos soldados e os quinhentos índios, mais os três capelães,
se envolvem os rios, as matas, os cerros, as planícies e nas relações que se
estabelecem entre os homens e a natureza advém uma espontânea proximidade.
Assim, mais do que uma notação de cenário ou das ações que neles se
concretizam, o vento envolve personagens, animais, objetos numa presença que
adquire contornos bem precisos como precisas funções no relato. Poucos termos o
qualificam – gelado, matinal, quente, alto e primaveril
– salvo no fragmento em que o padre Carvajal ao chegar ao segundo assento da
cidade, vindo da que fora abandonada onde havia permanecido para enterrar os
mortos, lembra o momento em que os retirou da forca e os estendeu no chão e do
vento que chegava penetrante, um pouco
úmido, mas agradável, impregnado no perfume
das flores e da água do rio. Imagens de morte e de vida que se contrapõem e
que serão reforçadas quando ele diz que o vento lhe trazia, também, o cheiro da
fumaça, ainda a queimar os campos semeados: um sutil encadear de seqüências,
dizendo uma, dos odores simples e puros da natureza e, outra, daquele provocado
pelo homem no seu afã de destruição. Tanto quanto o céu e a chuva, o vento conduzirá,
então, no mundo ficcional de El hombre que trasladaba las ciudades, detalhes
narrativos e significados em acorde com a intenção maior do romance: não
permitir a trégua que possa deixar no esquecimento o proceder ambíguo e cruel
na conquista do Continente. Como sujeito de um verbo que o relaciona com os
seres povoadores do romance e cujos complementos lhe fixam detalhes, o vento
terá uma função narrativa: alvoroçar o cabelo do padre Cedrón ou as roupas do
padre Carvajal, polir os ombros do capitão quando se apóia na janela de costas
para a praça, empurrar os cavalos e bater-lhe nas garupas, levantar a roupa
molhada, folhear os livros pousados sobre os móveis, incorporar e levar perfumes, ramos de flores, brisas
delgadas e persistentes.
Mas,
servir-se de algo tão simples como a ação do vento, também pode enriquecer
fragmentos do relato na reafirmação teimosa de que a lei do mais forte é sempre
a melhor. Num deles, dois espanhóis recusando-se a deixar a cidade, foram
mortos dentro de casa e ali ficaram. Na ânsia de lhes dar sepultura, assim como
aos enforcados, o padre Carvajal desprega as portas e janelas que haviam sido
clausuradas. No terrível relato do que aconteceu, se insere a breve frase o vento
agitou o teto, fazendo vibrar as tábuas soltas: as que permitiram aos
soldados atirar nos que se recusavam a partir. Outro breve episódio é o do
soldado que está trabalhando na sua casa quando outros lhe rendem os braços,
sem explicações, e o esbofeteiam e destroem janelas e paredes e ele vê a porta se açoitando contra o vento
enquanto passavam soldados amarrados, empurrados pelas armas. Ainda, o que
descreve o vôo dos corvos, descendo até as forcas vazias cujas cordas o vento
agita contra as escadas do patíbulo. Ou o que narra a chegada do capitão Ardiles
na cidade que está prestes, outra vez, a ser mudada de lugar. Chega junto com
os cavalos magros e cheios de terra, e os
ginetes magros e cheios de terra, nesse silêncio que revela as longas
caminhadas, com suas roupas e botas a emanar um ar lúgubre e enfermiço. Diante das mulas e lhamas secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos e umas bandeirinhas desbotadas e
desfiadas, brilhando no sol, Juan Núñez de Prado quase soluça, pensando no
vento, no sol, na chuva, na fome dos quais, certamente, eles tivessem sido as
vítimas. Como se, atribuindo aos elementos esse estar na origem das misérias e
dos sofrimentos, ele, assim, se inocentasse das culpas que lhe cabiam nessa trajetória marcada pela destruição.
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