domingo, 13 de outubro de 2002

Com o vento


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Com o vento, os testemunhos.


            Havia vento, soprava o vento, o vento soprou furioso, o vento ainda soprava contido, não havia vento breves expressões que, juntamente com outras a darem conta dos sons, dos odores, das cores do dia e da noite, do mover-se dos homens e dos animais, tornam pleno de vida o relato desse mundo da conquista do Continente, no ano de 1570. No entanto, no tumultuado caminho que Juan Núñez de Prado percorre com os capitães, os duzentos soldados e os quinhentos índios, mais os três capelães, se envolvem os rios, as matas, os cerros, as planícies e nas relações que se estabelecem entre os homens e a natureza advém uma espontânea proximidade. Assim, mais do que uma notação de cenário ou das ações que neles se concretizam, o vento envolve personagens, animais, objetos numa presença que adquire contornos bem precisos como precisas funções no relato. Poucos termos o qualificam – gelado, matinal, quente, alto e primaveril – salvo no fragmento em que o padre Carvajal ao chegar ao segundo assento da cidade, vindo da que fora abandonada onde havia permanecido para enterrar os mortos, lembra o momento em que os retirou da forca e os estendeu no chão e do vento que chegava penetrante, um pouco úmido, mas agradável, impregnado no perfume das flores e da água do rio. Imagens de morte e de vida que se contrapõem e que serão reforçadas quando ele diz que o vento lhe trazia, também, o cheiro da fumaça, ainda a queimar os campos semeados: um sutil encadear de seqüências, dizendo uma, dos odores simples e puros da natureza e, outra, daquele provocado pelo homem no seu afã de destruição. Tanto quanto o céu e a chuva, o vento conduzirá, então, no mundo ficcional de El hombre que trasladaba las ciudades, detalhes narrativos e significados em acorde com a intenção maior do romance: não permitir a trégua que possa deixar no esquecimento o proceder ambíguo e cruel na conquista do Continente. Como sujeito de um verbo que o relaciona com os seres povoadores do romance e cujos complementos lhe fixam detalhes, o vento terá uma função narrativa: alvoroçar o cabelo do padre Cedrón ou as roupas do padre Carvajal, polir os ombros do capitão quando se apóia na janela de costas para a praça, empurrar os cavalos e bater-lhe nas garupas, levantar a roupa molhada, folhear os livros pousados sobre os móveis, incorporar e levar perfumes, ramos de flores, brisas delgadas e persistentes.

            Mas, servir-se de algo tão simples como a ação do vento, também pode enriquecer fragmentos do relato na reafirmação teimosa de que a lei do mais forte é sempre a melhor. Num deles, dois espanhóis recusando-se a deixar a cidade, foram mortos dentro de casa e ali ficaram. Na ânsia de lhes dar sepultura, assim como aos enforcados, o padre Carvajal desprega as portas e janelas que haviam sido clausuradas. No terrível relato do que aconteceu, se insere a breve frase o vento agitou o teto, fazendo vibrar as tábuas soltas: as que permitiram aos soldados atirar nos que se recusavam a partir. Outro breve episódio é o do soldado que está trabalhando na sua casa quando outros lhe rendem os braços, sem explicações, e o esbofeteiam e destroem janelas e paredes e ele vê a porta se açoitando contra o vento enquanto passavam soldados amarrados, empurrados pelas armas. Ainda, o que descreve o vôo dos corvos, descendo até as forcas vazias cujas cordas o vento agita contra as escadas do patíbulo. Ou o que narra a chegada do capitão Ardiles na cidade que está prestes, outra vez, a ser mudada de lugar. Chega junto com os cavalos magros e cheios de terra, e os ginetes magros e cheios de terra, nesse silêncio que revela as longas caminhadas, com suas roupas e botas a emanar um ar lúgubre e enfermiço. Diante das mulas e lhamas secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos e umas bandeirinhas desbotadas e desfiadas, brilhando no sol, Juan Núñez de Prado quase soluça, pensando no vento, no sol, na chuva, na fome dos quais, certamente, eles tivessem sido as vítimas. Como se, atribuindo aos elementos esse estar na origem das misérias e dos sofrimentos, ele, assim, se inocentasse das culpas que lhe cabiam nessa trajetória marcada pela destruição.

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