domingo, 20 de outubro de 2002

E as flores.1



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Para muitos dos espanhóis, nas flores é reencontrar a pátria, mas, também, outra vez,  perdê-la, submissos às vontades maiores.

            Os cavalos se moveram em pouco e como se desejassem esconder aquilo. O soldado fora morto pelo capitão, em pleno sol, por ter ousado retrucar: tu puseste na cadeia todos aqueles que desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu somente queres homens a cavalo, agarrados a seus arcabuzes e às adagas, somente queres soldados. Dos duzentos que seguiram Juan Núñez de Prado, nem todos, no entanto, queriam ser homens de armas. Muitos haviam deixado a velha Espanha, buscando o que nela não poderiam ter: algo de seu. E a casa construída na cidade recém fundada, representava o lugar onde se enraizar. Entre essa vontade e a do capitão, dominado pelo medo e pelo afã de seguir adiante, se inserem as dissidências que levam à morte, decretada em nome das justiças. Porque, aos que desejam ficar, aos que não querem ir, os capitães argumentam  sem convencer e, então, usam de suas leis que dizem ser as do rei e as de Deus. E exclama Guevara: se não sabem abandonar virilmente uns vasos com flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como compreendes, senhor, que esta tropa de ladrões e assassinos tenha embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? E diz Griego: olha senhor esse preso que anda tresnoitado para a sua cela, é um bom homem, um perfeito cristão, conhece seu dever com Deus e seu oficio com o rei, seu trabalho é agora sofrer, porque, senhor, nós temos pressa e ele não, nós pegamos o martelo e ele a pazinha do jardim, se dirige à prisão belamente esperançoso, a esperar que apodreçam as cordas e ele fique livre e boceje expulsando o sopor e o cansaço e as más lembranças e volte a cuidar de suas rosas, porque nós, não carregamos flores, nem os crisântemos, nem a fruta, nem a queda d’água nem o céu [...]. E fala Ardiles para o soldado: olha, Luciano, estamos desfeitos mas faremos justiça com os traidores. Choras porque os soldados destripam umas sacadas e os cavalos pisoteiam umas flores? Por isso queres te rebelar contra o rei, o vice-rei e o capitão? E conclui Juan Núñez de Prado: somos capazes de levar uma cidade nas costas, o mundo novo sobre os ombros, que eles chorem, eu não choro, eu não tenho vasos de flores na minha sacada, eu não tenho sacada, eu não plantei limoeiros, nem amendoeiras, nem pessegueiros, nem alecrim, nem rosas. Mas, ou porque essas flores cultivadas significam, para muitos, a real posse da terra, ou porque seja verdade o que diz um dos capitães a respeito dos que se apegam à terra – cravam primeiro um prego e logo plantam uma flor – o olhar de Juan Núñez de Prado, ao se deter sobre os móveis, as roupas, os pedaços da cidade, freqüentemente recai sobre as flores que estão perto das portas e janelas atiradas no chão, junto com as roupas espalhadas ou pendendo das janelas ou se lançando para o alto. Ainda que pareça incoerência, é com flores que ele imagina a cidade assentada: as ruas silenciosas, as sacadas cheias de flores e de romanças e são flores que também lhe dão razões para a mudança da cidade. Uma, para assentá-la definitivamente, para rapidamente por em ordem suas praças, por em ordem seus edifícios, deixar erguida a torre da igreja, esparramar umas pombas, abrir uns vasos de flores. Outra, para reafirmar a necessidade premente de levá-la para um novo lugar, pois haverá o dia em que chegarão ginetes furiosos, arremessando nas sacadas cheias de flores para desfazê-las.



Tais conflitos que, em meio a muitos outros, surpreendem apenas por esse inesperado apego às flores – na verdade mencionadas,  só as rosas, os cravos, as violetas e os crisântemos – ao serem regidos pelo desejo de repetir no Continente algo de um universo que foi deixado para trás – a casa espanhola com suas sacadas e suas flores – não significam somente a expressão do comovente, e tão intensamente manifestado, sentimento do expatriado, mas, também, motivo para delinear as relações entre os que arbitrariamente decidem e os que às decisões sempre devem se submeter. Um tema certamente caro a Carlos Droguett que, sabe-se, não ser um autor que use do lirismo para simplesmente falar de flores.

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