No
dia 2 de abril de 1964, a casa de Mário Lago foi invadida por doze homens,
portando metralhadoras e bombas de gás lacrimogêneo, que o buscavam para lhe
dar voz de prisão. E para a prisão, como tantos outros, trancafiados por razões
as mais obscuras, bizarras e inacreditáveis, ele foi. E sobreviveu, o que mais
tarde – a repressão instituindo a tortura e a prática do desaparecimento – nem
sempre foi possível para os ditos inimigos do sistema. Uma aventura, com todos
os seus riscos imagináveis, que ele houve por bem narrar na convicção de que toda experiências deve ser passada adiante e sob o título de Reminiscências
do sol quadrado, foi publicada, em 1979, pela Avenir Editora, do Rio de
Janeiro. Na verdade, se o leitor assim quiser, um pequeno manual de humor,
entremeado das crueldades devidas à ignorância e ao arbítrio que, no entanto,
não bastaram para esmaecer a grande confiança de Mário Lago nos seus
semelhantes. Assim, o livro se inicia com o episódio de sua prisão, em
circunstâncias, no mínimo jocosas e termina com a lembrança de um episódio,
marcado pela solidariedade.
Vindo
à luz depois de quinze anos dos fatos terem ocorrido mostrou que, na verdade, o
passar do tempo não faz esquecer nem o medo, nem a angústia vividos pelos que
são presos aleatoriamente. Tampouco, o ridículo da repressão cujos executores
de ordens muito poucas vezes sabem o que estão fazendo. Não compreendi, até hoje, por que tanto aparato para me prenderem. O
fato é que, após meia hora de perequeteio pela casa, um tira resolveu pedir
reforços, como se tivessem cercado
uma fortaleza disposta a resistir até o último homem, narra Mário Lago numa
seqüência que, seja pelos seus termos, seja pela comparação não isenta da
troça, está na medida certa dessa ação disparatada e truculenta. Disparate e
truculência que irão guiar as sucessivas e injustas prisões que passaram a
ocorrer.
Levado
para o Dops, transferido para a Ilha das Flores e depois para a prisão
Fernandes Viana, ele foi encontrando conhecidos e esses outros que também nada
deviam, nem tinham consciência das razões do que lhes estava a acontecer. Um
exemplo extremo é o de José Emídio de Jesús, um dos casos mais característicos da bestialidade vivida naqueles dias,
segundo expressão de Mário Lago que o descreve como preto a doer a vista, pouco
menos que débil mental, nem o próprio nome sabia dizer direito. Vivia
de biscates e foi preso por uma patrulha do exército, na Estação Engenheiro
Pedreira, quando não conseguiu explicar o que estava fazendo ali. Ficou na
cadeia cinqüenta dias porque ele, com seu andar vacilante, com suas palavras
que mal se entendiam, com seu riso que era
mais um arreganhar de gengivas, que dentes já não tinha há muito tempo,
talvez fosse, na opinião daqueles que o prenderam o líder dos camponeses, o homem que conduziria a reforma agrária, e que só podia estar na gare da estação à espera dos
companheiros com que ia internar-se
no mato e iniciar a guerrilha rural. Um episódio exemplar, para, entre
outras coisas, definir uma das formas de relação entre as classes, no país.
Junto com outros, quem sabe engraçados, talvez dê sentido, como lembrou Mário
Lago, às extraordinárias palavras de Brigitte Bardot que ele percebe cheias de
ironia: Adorable votre révolution.
E
o livro termina não com o momento de sua liberdade: na década de setenta, ela,
ainda, era uma esperança, mas com aquele em que sua filha é levada presa para a
Ilha das Flores e sozinha em sua cela, inquieta sobre o que poderia lhe
acontecer, escuta, cantada por muitos, a marcha rancho de Chico Buarque Quem é você?/ Me responda que eu quero saber.
A lucidez se lhe sobrepôs à emoção e ela começou a cantar os primeiros compassos
de Ai que saudades da Amélia. Uma
voz, que ela não sabia de onde vinha, passou a informação E’ a filha do branco.
Mário
Lago apenas acrescenta – O resto agora
era fácil, ela sentia que não estava sozinha – numa soberba profissão de fé
na força e na felicidade de estar entre os seus. Apesar de tudo.

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