La
canción de nosotros, de Eduardo Galeano, escrita entre 1973 e 1974, como
romance, foi prêmio Casa de las Américas, em 1975. Construído em duas linhas
narrativas, “El regreso” e “Andares de Ganapán” que se alternam com breves
textos, “La ciudad”, “La máquina”, e “El Santo Oficio de la Inquisición”. “La
ciudad”, se refere à cidade de Montevidéu, no tempo do terror vivido sob a ditadura
que imperou no Uruguai nas décadas de setenta e oitenta; “La máquina”, à cenas
de tortura, ao ensejo da existência do delator, ao cadáver jogado nos baldios,
à felicidades truncadas; “El Santo Oficio de la Inquisición”, uma transcrição
de documentos do Tribunal, em Lima. Uma das linhas narrativas, “El regreso”,
nos seus sete capítulos, relata a experiência de Mariano, jornalista que foi
preso por indagar o paradeiro de um amigo desaparecido. O relato se faz,
inicialmente, pelas palavras de um narrador onisciente que lhe segue os passos,
nas primeiras horas da manhã, até o café onde irá se encontrar com a mulher que
abandonou três anos antes sem explicar as razões e motivo de seu regresso. A
ela, irá dizer as palavras que o perseguem, relatando a sua última noite de
trabalho no jornal quando o pedido de um amigo, que a greve fracassada obrigara
a se esconder, o leva até o seu apartamento onde são surpreendidos pela
polícia. Consegue fugir e perambula muitos dias pela cidade, dormindo nos
ônibus, a desconfiar de todos e, no intento de salvá-lo, procura amigos e
advogados que, no entanto, já pouco podem fazer. E houve o dia em que acaba
sendo apanhado. Suas palavras, ao narrar essa trajetória, iniciada com o
suplício que lhe impuseram de permanecer de pé, com as pernas abertas e as mãos
amarradas atrás das costas, durante noites e dias e que segue com os
interrogatórios sob tortura, com o tempo passado incomunicável, com o rosto
sempre coberto pelo capuz e com a fuga, registram as atrocidades a que foi
submetido e a consciência da escassa vida que lhe restava.
Interrogado,
o sofrimento físico se alia ao moral, ao medo desse momento em que tudo irá
recomeçar e a fronteira das dores se dilui porque elas “se sobrepõem e se
anulam umas às outras” para voltar todas juntas no interregno entre uma sessão
e outra. Sobretudo, ao medo da tentação de se salvar, entregando um dado,
apenas um, ou de se cortar os pulsos com os vidros da janela ou de se atirar
por ela abaixo. E estar nu diante dos que estão vestidos; nada poder ver com o
capuz a tapar-lhe o rosto diante do olhar do outro; ter as mãos e os pés
atados, diante dos que estão livres; sentir-se doente e fraco, diante dos que
estão saudáveis é um tormento a mais. Ao qual se acresce o ser mantido com o
rosto enfiado no capuz numa cela onde é impossível permanecer de pé sem ter que
dobrar o pescoço, ouvir gritos a qualquer hora e num isolamento de incontáveis
dias sem luz. Rotina quebrada, um dia quando tiraram os prisioneiros das celas
e lhes permitiram tirar o capuz, anunciando duas horas de recreio em que
poderiam se mover, não, porém, se comunicar uns com os outros. No primeiro
momento, ninguém teve coragem e permaneceram quietos. Logo, os que ainda tinham
força, se movimentaram, embora as condições físicas não permitissem que fosse
por muito tempo. Outros nem isso conseguiam. De volta à cela, o capuz foi
dispensado e o horizonte de Mariano se ampliou: Podia ver o mundo por um buraquinho. O mundo era um corredor, mas isso
ajudava. Pouco, pois sabia que nas
próximas torturas iria sucumbir e a idéia de fuga passou a dominá-lo. E
imaginar e tornar a imaginar como realizar tal proeza, como um único
preparativo a seu alcance, o correr na cela, no mesmo lugar. O que de fato lhe
valeu ao se lançar muro abaixo e correr, alvo das balas e dos cães treinados
até se atirar no arroio sujo, continuando a fugir na água, entre braçadas e o
mergulhar a cabeça na água podre. Apenas ao amanhecer saiu do arroio, já sem
poder caminhar, as mãos feridas pelos vidros do muro. Deixou-se cair sobre o
capim. Ainda, vai contar como um antigo operário metalúrgico sem emprego, o
achou¸ levando-o para o seu rancho e lhe vendou as mãos com trapos e o
agasalhou por uma semana. E como foi embora sem se despedir e caminhou muito
para atingir as margens do rio e cruzar a fronteira num barco de
contrabandistas.
No último
capítulo do livro, dá-se o reencontro de Mariano com Ganapán, o homem que o
socorreu e cuja história constitui “Andares de Ganapán”, assim como a de Mariano,
feita de sete capítulos: Mariano voltou
ao caminho da fuga. Está querendo rumar, pela margem do arroio, para a casa do
homem que o recolheu. O relato volta, pois, a ser feito pelo narrador
onisciente que vai acompanhar outra vez Mariano, agora às aforas da cidade,
entre a fila de ranchos entortados por
muitos vendavais e tormentas. Ele não
sabe o nome de quem o ajudou que, por sua vez, ignora o seu. Mas, se abraçam no
reencontro e partilham da comida pobre, sem tempero, porque no armazém não
fiaram o azeite, nem os tomates, nem a cebolinha
verde. Mariano explica ter voltado para agradecer e também... A expressão
se interrompe e as curtas seqüências que seguem apenas lhes completam a idéia.
Que, no entanto, desabrocha na ultima frase: As duas sombras gigantes, se aproximam
na parede de lata, sugerindo uma nova e oportuna conspiração.
Porque ainda
era, no Continente, o tempo da esperança no poder da luta e das conquistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário