domingo, 8 de dezembro de 2002

Sob o sol quadrado. 2


            Norberto, no armazém onde ele chegou para comprar cigarros, lhe pagou os fósforos e depois o incorporou ao grupo na viagem curta, divertida até o mar. Os outros acharam que era meio louco, mas para Norberto isso não tinha importância. Assim, quando decidiu não retornar a Porto Alegre, conforme o combinado, mas continuar a viagem mais para o norte, o levou junto. Em Torres, comprou passagens de ônibus para Araranguá. Chegaram noite fechada, avistando primeiro o rio, depois a cidade, marcada por uma fileiras de carvãozinhos mal acesos. E o ônibus não chegou a parar, já aconteceu a interpelação, indagando por Norberto, na voz dura e precipitada de um dos três homens que tomaram posição perto do veículo. Foi o começo de uma outra viagem: aquela decidida pelas autoridades, ao considerá-los agitadores, e, aleatoriamente, presos de importância. Será narrada na segunda parte do romance O Louco do Cati,  de Dyonélio Machado (Porto Alegre, Editora Globo, 1942), que tem por título “No escuro”, síntese sugestiva para os dezesseis capítulos que dão conta da prisão de Norberto e seu companheiro, da sua  transferência de Florianópolis para o Rio de Janeiro a bordo de um navio e da permanência na casa de detenção.  Como nas mãos das autoridades locais que os detiveram em Araranguá seriam sem proveito, os despacharam, no mesmo ônibus que haviam chegado, para Florianópolis. Lá foram encarcerados: porta fechada com grades e um soldados de baioneta calada  montando guarda. Logo, a cela, junto com outros presos e a mudança, num tintureiro, para o navio rumo à capital. Novamente o tintureiro e a chegada ao destino, sendo designados a um cubículo, cujo número, “quatorze”, dará nome ao capítulo. Juntamente com os cinco seguintes que irão lhes registrar o cotidiano de presidiários. Um cotidiano definido pelas relações que se estabelecem entre os que devem compartilhar um espaço exíguo, um longo tempo sem proveito e pelos seus pobres e tristes rituais.

            Num primeiro momento, a acolhida a Norberto e ao seu companheiro pelos que lá estavam
na boa vontade em dividir a comida, que não era muita, na satisfação pela existência das duas esteiras que haviam servido a outros dois presos, transferidos dias antes, no empréstimo dos travesseiros, na disposição em fazer um café, no interesse em desejar saber de onde vinham, em prestar as informações sobre as normas, em ceder roupas, em conseguir-lhes os serviços de mesa: a colher e a caneca de alumínio que servia como chicrinha de cafezinho, taça de café grande, copo pra água e prato fundo de sopa. Depois, no tempo que passa, os rituais, comandando os homens na distribuição dos alimentos, nos cuidados com a higiene, na hora do lazer.

            O café da manhã, isto é, o bromureto, mistura anafrodisíaca, era servido numa vasilha de lata, espécie de regador de jardim, sem o ralo, cujo bico era introduzido pelas grades para despejá-lo nas canecas e que era acompanhado de pão, um para cada preso. O almoço, levado em caixões-bandejas, lenta operação que, não raro, terminava no meio da tarde, chegando, por vezes,  após a  sobremesa, a laranja dos asilos e das penitenciárias. Também a higiene, ocorria em dois tempos: a coletiva, quando era feita a limpeza da cela e a individual, no chuveiro improvisado. Inicialmente, o combate ao percevejo, feito com uma tocha de papel de jornal que percorria os lastros e os varões das camas e os buracos das paredes que eram, tapados com sabão. Logo, a limpeza da  “louça”, da pia, do water closet. Por fim, a lavagem do chão. Para o banho, improvisada uma pequena cerca. No chão, um buraco, perto da parede ia alcançar o cano de esgoto da pia. Na torneira, em cima, adaptava-se um  “cano” feito com meia dúzia de latas vazias de doce de coco, embutidas umas nas outras. A altura em que o cano deveria ficar, era regulada por um cordel que se fixava num prego na parede e que partia de sua extremidade livre. – Abria-se a torneira. A água era recolhida por aquilo. O sujeito baixava-se um pouco e recebia-a  nas costas. Não muito, porque a água tinha hora para chegar  e chegava num fiozinho. Como o meteórico sol dos encarcerados, essa hora em que podiam caminhar, exercitar-se, fazer ginástica, conversar e que se extinguia tão breve, no retorno aos cubículos, poços sem luz.

            No último capítulo dessa segunda parte, Norberto que não se descuidara, tirando proveito das oportunidades de se comunicar com o exterior, consegue sua liberdade e, então, também a de seu companheiro. Para trás deixa o cubículo quatorze, retornando  à sua vida de sempre e inicia a necessária e imprescindível tarefa de conseguir meios de voltar ao sul. A cadeia não mais será mencionada, como se tivesse sido, apenas, um episódio à parte e sem importância. E a narrativa de O Louco do Cati, como a vida, segue o seu curso, espelhando nos capítulos seguintes, um mundo, talvez, ou certamente, utópico nessa força solidária que o move. Sem dúvida, a mesma que orienta a escrita de Dyonélio Machado. Uma escrita que não foi contaminada pelo horror da perda de liberdade, dos maus tratos, da injustiça sofrida, embora quarenta anos passados de sua experiência na cadeia – Dyonélio Machado esteve preso de 1935 a 1937, por delito de opinião – ele dissesse: Eu tenho duas vidas. Uma antes e outra depois da prisão.

            Nas últimas linhas de O Louco do Cati há um sol dourado que tudo ilumina.

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