Norberto,
no armazém onde ele chegou para comprar cigarros, lhe pagou os fósforos e
depois o incorporou ao grupo na viagem curta,
divertida até o mar. Os outros acharam que era meio louco, mas para
Norberto isso não tinha importância. Assim, quando decidiu não retornar a Porto
Alegre, conforme o combinado, mas continuar a viagem mais para o norte, o levou
junto. Em Torres, comprou passagens de ônibus para Araranguá. Chegaram noite
fechada, avistando primeiro o rio, depois a cidade, marcada por uma fileiras de carvãozinhos mal acesos. E o ônibus não
chegou a parar, já aconteceu a interpelação, indagando por Norberto, na voz dura e precipitada de um dos três
homens que tomaram posição perto do veículo. Foi o começo de uma outra viagem:
aquela decidida pelas autoridades, ao considerá-los agitadores, e, aleatoriamente, presos
de importância. Será narrada na
segunda parte do romance O Louco do Cati, de Dyonélio Machado (Porto Alegre, Editora
Globo, 1942), que tem por título “No escuro”, síntese sugestiva para os
dezesseis capítulos que dão conta da prisão de Norberto e seu companheiro, da
sua transferência de Florianópolis para
o Rio de Janeiro a bordo de um navio e da permanência na casa de detenção. Como nas mãos das autoridades locais que os
detiveram em Araranguá seriam sem proveito, os despacharam, no mesmo ônibus que
haviam chegado, para Florianópolis. Lá foram encarcerados: porta fechada com grades e um soldados de baioneta calada montando guarda. Logo, a cela, junto com
outros presos e a mudança, num tintureiro, para o navio rumo à capital.
Novamente o tintureiro e a chegada ao destino, sendo designados a um cubículo,
cujo número, “quatorze”, dará nome ao capítulo. Juntamente com os cinco
seguintes que irão lhes registrar o cotidiano de presidiários. Um cotidiano
definido pelas relações que se estabelecem entre os que devem compartilhar um
espaço exíguo, um longo tempo sem proveito e pelos seus pobres e tristes
rituais.
Num
primeiro momento, a acolhida a Norberto e ao seu companheiro pelos que lá
estavam
na boa vontade em dividir a
comida, que não era muita, na satisfação pela existência das duas esteiras que
haviam servido a outros dois presos, transferidos dias antes, no empréstimo dos
travesseiros, na disposição em fazer um café, no interesse em desejar saber de
onde vinham, em prestar as informações sobre as normas, em ceder roupas, em
conseguir-lhes os serviços de mesa: a
colher e a caneca de alumínio que servia como chicrinha de cafezinho, taça de café grande, copo pra água e prato fundo de sopa. Depois, no
tempo que passa, os rituais, comandando os homens na distribuição dos
alimentos, nos cuidados com a higiene, na hora do lazer.
O
café da manhã, isto é, o bromureto, mistura anafrodisíaca, era servido numa
vasilha de lata, espécie de regador de
jardim, sem o ralo, cujo bico era introduzido pelas grades para despejá-lo
nas canecas e que era acompanhado de pão, um para cada preso. O almoço, levado
em caixões-bandejas, lenta operação que, não raro, terminava no meio da tarde,
chegando, por vezes, após a sobremesa, a laranja dos asilos e das penitenciárias. Também a higiene,
ocorria em dois tempos: a coletiva, quando era feita a limpeza da cela e a
individual, no chuveiro improvisado. Inicialmente, o combate ao percevejo,
feito com uma tocha de papel de jornal que percorria os lastros e os varões das
camas e os buracos das paredes que eram, tapados com sabão. Logo, a limpeza
da “louça”, da pia, do water closet.
Por fim, a lavagem do chão. Para o banho, improvisada uma pequena cerca. No
chão, um buraco, perto da parede ia alcançar o cano de esgoto da pia. Na torneira, em cima, adaptava-se um “cano” feito com meia dúzia de latas vazias
de doce de coco, embutidas umas nas outras. A altura em que o cano deveria
ficar, era regulada por um cordel que se fixava num prego na parede e que
partia de sua extremidade livre. – Abria-se a torneira. A água era recolhida
por aquilo. O sujeito baixava-se um
pouco e recebia-a nas costas. Não
muito, porque a água tinha hora para chegar e chegava num fiozinho. Como o meteórico sol dos encarcerados, essa
hora em que podiam caminhar, exercitar-se, fazer ginástica, conversar e que se
extinguia tão breve, no retorno aos cubículos, poços sem luz.
No
último capítulo dessa segunda parte, Norberto que não se descuidara, tirando
proveito das oportunidades de se comunicar com o exterior, consegue sua
liberdade e, então, também a de seu companheiro. Para trás deixa o cubículo
quatorze, retornando à sua vida de
sempre e inicia a necessária e imprescindível tarefa de conseguir meios de
voltar ao sul. A cadeia não mais será mencionada, como se tivesse sido, apenas,
um episódio à parte e sem importância. E a narrativa de O Louco do Cati,
como a vida, segue o seu curso, espelhando nos capítulos seguintes, um mundo,
talvez, ou certamente, utópico nessa força solidária que o move. Sem dúvida, a
mesma que orienta a escrita de Dyonélio Machado. Uma escrita que não foi
contaminada pelo horror da perda de liberdade, dos maus tratos, da injustiça
sofrida, embora quarenta anos passados de sua experiência na cadeia – Dyonélio
Machado esteve preso de 1935 a 1937, por delito de opinião – ele dissesse: Eu tenho duas vidas. Uma antes e outra
depois da prisão.
Nas
últimas linhas de O Louco do Cati há um sol dourado que tudo ilumina.

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