domingo, 10 de novembro de 2002

Dizer de novo


Chega de mansinho e se explicando no primeiro poema do livro, Eu não queria dizer / o que tanto foi dito. Mas, rendido foi pela emoção de amar que o impediu do silêncio, seus versos se sucedem belos, misteriosamente translúcidos. Agrupam-se num pequeno volume, Livro dos amores, publicado pela WS Editor de Porto Alegre, em 1999, Prêmio Açoriano de Literatura do Ano 2000. E cada um deles, breve milagre da expressão amorosa, ora dirigida à mulher amada, ora enovelando-se num dizer que procura se encontrar e que se mostra pleno das riquezas de uma sabedoria assaz rara em alguém nascido há apenas quatro décadas. Médico, psiquiatra, psicoterapeuta, autor de Caderno dos espelhos (1993), Punhais do minuano (1998), Os olhos de Borges (1999), Inventário de Cronos (2002), Jaime Vaz Brasil, é inegável, conhece o ofício de poetar cuja síntese muito bem soube fazer Luiz Antonio de Assis Brasil a respeito deste Livro dos Amores: aqui estão as dúvidas, as incertezas, as certezas transitórias, enfim, aqui estão todas as vacilações e exaltações que todos nós sentimos, mas que exigem um poeta de porte para nos dizer.

E Jaime Vaz Brasil é um poeta de porte que se abriga sob a singeleza das pequenas estrofes, dos versos rimados, de um dizer quase transparente, como no poema “O amor às portas do medo”, para falar de um sentimento tão simplesmente humano como o medo que se enleia ao querer, esperançoso, de outra vez se submeter ao amor. O medo de quem foi marcado, minha alma tem remendos; de quem procura ser prudente e se defender na solidão, Nas portas de minha alma / quero instalar um cadeado / Quero grades e barreiras/e meus caminhos fechados, mas se vê impotente. E então, entrevê negociações que, ingenuamente, usam o verbo impor, no desejo de receber a delicadeza das esponjas e espumas, admitindo, porém, na última estrofe, um fracasso que o verso anterior explica: tenho a alma fraca e tonta e se confessando indefeso face à invasão – outra vez estão batendo – do amor.

            Ainda usando estrofes de dois versos, que neste Livro dos Amores parecem ser da sua predileção, assim como o ritmo perfeito de seus heptassílabos, Jaime Vaz Brasil se aprimora em “O Amor aos Olhos de Náufrago”. Poema em dois tempos em que oito estrofes se fazem de ricas e sugestivas comparações a preparar os dois versos finais. Com sua estrutura paralela e um instigante  jogo de palavras, o poema é admiravelmente construído sem que, no entanto, a sua forma trabalhada esmaeça o sentido lírico do verso, eu chegarei ao teu corpo,  primeiro elemento das sete comparações que formam os três versos iniciais tanto no poema I quanto no II. Na primeira estrofe ao barco na tormenta do poema I, corresponde um barco em águas lentas do poema II. Ou seja, uma palavra é repetida, porém o seu sentido se apresenta transformado pelos seus adjuntos. Ainda na primeira estrofe, ao potro que se solta, do poema I, corresponde o pássaro que pousa, do poema II. Em ambos, a referência a um animal, aquele sabe pleno de juventude e energia, pretendendo a liberdade, o que expressa a delicadeza e que procura o repouso. Na segunda estrofe dos dois poemas, a comparação se completa no segundo verso. E na terceira, não mais se inicia com o advérbio de comparação, mas com a preposição com, dando idéia de modo (com febre de marinheiro, com a fome de cem dias, com a constância dos monges, com assombros de menino). Na quarta estrofe, novamente a troca de palavras (e o desespero de um náufrago depois de um breve esperar, do poema I ao que irá corresponder “e a mansidão de um náufrago/depois de um longo esperar), antecedendo a última, idêntica nos dois poemas: eu chegarei ao teu corpo / como um rio se entrega ao mar. Um pleonasmo que além de exprimir teimosamente um desejo, desnuda a submissão desse “eu” que se quer menor (rio) diante do objeto de seu desejo (mar).

            Neste domínio da forma que prescinde dos grandes recursos retóricos e da grandiloqüência do léxico, o falar de amor de Jaime Vaz Brasil é feito, sobretudo, de uma profunda riqueza lírica o que lhe permite o privilégio de expressar o que tanto foi dito como se fosse a primeira vez.

O Amor aos Olhos de Náufrago

                           I                                                                                                     II

Como um barco na tormenta                                                           Como um barco em águas lentas
como um potro que se solta                                                              como um pássaro que pousa 

como quem grita no escuro                                                               como quem olha ou escuta
e ganha os ecos em si.                                                                       O silêncio dos mosteiros. 

Com febre de marinheiro                                                                  Com a constância dos monges
com a fome de cem dias                                                                   com assombros de menino 

e o desespero de um náufrago                                                          e a mansidão de um náufrago
depois de um breve esperar                                                              depois de um longo esperar 

eu chegarei ao teu corpo                                                                   eu chegarei ao teu corpo
como um rio se entrega ao mar.                                                        Como um rio se entrega ao mar.

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