domingo, 24 de fevereiro de 2008

O jogo do tempo *



            Isidora não sabe quando vai acontecer, nem por qual trilha vai chegar, tampouco o calor que irá trazer, no entanto, espera algo que presume será maravilhoso. Uma espera que se inicia logo cedo, na manhã de domingo, antes que chegue o dia: um esplendor vago a obriga a abrir os olhos. É algo impreciso e promissor que amanhece dentro dela. Começa, então, tem algumas horas pela frente, a mensurar o tempo que, nesse conto “Domingo”, de Yamandú Rodriguez do qual é protagonista, se escoa  marcado pelos suas relações com os animais que povoam os arredores do rancho isolado onde vive e por aquelas que a ligam ao avô de quem é companhia. Assim, embora não haja menção a expressões nitidamente temporais, indicativos de tempo são o ato de ordenhar (por muito que madrugue a hosca está sempre antes dela no tambo”); de ir procurar alimento para seus passarinhos; do aproximar-se o cavalo do rancho ao anoitecer; das galinhas procurarem os galhos da árvores para dormir. Porém, à espera desse passar do tempo compreendido entre o depois do almoço e o fim do dia, ela se impacienta e no desejo de diminuir as horas lerdas da manhã, torna a perguntar ao avô pelas lembranças de suas aventuras guerreiras (que já escutou tantas vezes) enquanto escolhe, em pensamento a cor da fita que à tarde irá por no cabelo; canta a manhã inteira, arruma o seu quarto, espia a estrada onde ninguém passa, mas cuja vista, embora sem esperar por ninguém,  lhe acelera o pulso porque uma visita ao rancho sempre a impressiona. Mencionado em horas precisas, outras tantas vezes: quando ela espera – se o dia amanhece nublado – que ao meio dia escampe. E enquanto as horas passam vai ficando mais séria, almoça sem apetite só quer poder se fechar no quarto diante do espelho diante do qual fica duas horas. Acordando da sesta, o avô a chama para que faça o mate e avisa: São três horas” Ela diz que já vai, e sem pressa põe o pó de arroz, o vestido, a fita no cabelo. Meia hora depois, ainda está de chinelo e se decide a calçar os sapatos que lhe machucam os pés o que, no domingo, suporta, sem sentir, até que se esconda o último raio de sol. Pronta, vai até a cozinha exibir-se para o avô e, tranqüila em saber que somente irá chover de madrugada, vai se sentar na frente da casa. Logo, chega o avô com seu banco. Quinze minutos passam em silêncio, ele pica fumo para seu palheiro e o fuma com calma. Meia-hora depois, torna a fazer outro e cansa de olhar para a estrada. O tema do tempo se desloca: Isidora compadece o avô pela sua vida, sempre igual, constata que os vizinhos vivem pendentes do tempo: o dia não chega para empurrar o arado e a noite para descansar. A tarde avança e o avô entra na casa onde durante uma hora acende o isqueiro e joga fora os tocos de cigarro.
E, nesse tempo todo, nada aconteceu a não ser o cavalo ter comido a flor de malva. Outra meia hora se passa e as nuvens ocultam o sol, a tarde se apaga. Isidora continua perto da estrada e na boca da noite ainda espera. O avô a chama gritando para que prepare a comida. Isidora não enxerga mais nada. Desiste e se dá conta que sua diversão acabou. Retorna à rotina: fazer a comida, comer, dormir e acordar na segunda-feira para repetir o ciclo da espera e ver chegar o domingo. Para esperar.
 * Inédito

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O ofício


 
             No seu prólogo a Tacuruses, um dos mais belos livros de poemas da Literatura Gauchesca, Victor Perez Petit diz que o problema do destino do homem humilde dos campos uruguaios palpita, constantemente, nessas páginas de Serafin J. García, o que também pode ser dito a respeito de seus contos. E, assim, dos relatos de Yamandú Rodriguez o que lhes determinou o sucesso, tendo sido sua obra espalhada por várias revistas, entre as quais algumas de Buenos Aires. Porém, nem tudo o que escreveu, salvo o volume de suas Poesias Completas (1953), foi compilado em livro. Em 1969, apareceu Cuentos escogidos, um pequeno livro que reúne seis contos que jaziam perdidos nas páginas de amareladas revistas, que, na opinião de Serafin J. Garcia que os selecionou, se constituem os melhores dentre os que escreveu. Na verdade, uma perícia narrativa, demonstrada ao construir seu relato a partir de um quase nada. Em “Domingo”, o penúltimo da coletânea, se trata, apenas da tarde de domingo que o avô e neta passam, sentados à beira da estrada, em pleno ermo que é onde está o rancho onde vivem. Há todo um preparativo que preenche o tempo da menina-moça a partir da hora em que termina de arrumar a cozinha até aquela em que o avô se levanta da sesta. Isidora (assim ela se chama) já se considera pronta para ir sentar na frente da casa à espera de algo. Sinuosa, a narrativa se enleia no passado. Episódios da vida do avô: suas lides guerreiras, empreendidas mais por desenfado do que por convicção partidária, com o batismo de fogo acontecido não por valentia, mas por não ter dominado o cavalo que o fez se expor demais ao inimigo. Três lembranças da mulher: quando a conheceu, nas ocasiões em que ela descobriu seus amorios com as comadres e a noite que passou galopando para encontrá-la com vida e ao chegar já estava sendo velada. Muito pouco, de Isidora. Aceitou ir para a casa do avô que prometia colégio e roupa e nos três anos que se passaram ganhou só um vestido e as tarefas da casa para fazer. Porém, ao se deter em breves cenas que animam um cenário de singelezas, é um relato cujo ritmo permanece ágil: as galinhas que se abrigam do sol na efêmera sombra do rancho e ali ficam com os bicos abertos ou a que seguida dos pintainhos se aproxima de Isidora, pula no seu colo, desce para o chão, apanha as migalhas de pão e as reparte; o cachorro baio, preguiçoso e sem graça que vai junto com a dona em busca de minhocas para alimentar as calhandras e à tardinha volta triste, com cheiro de zorrilho e tenta se refugiar na sala de onde é tocado e só lhe resta ir se deitar no pátio; a vaca “hosca”, sempre adiantada para a ordenha que Isidora faz com a cabeça apoiada no seu corpo morno. Chamado por Isidora indignada, o velho cavalo que abandonara o capim que pastava para se aproximar da janela e arrancar a flor da malva: surpreendido em falta, gira sobre as patas e fica imóvel de frente para a estrada com o pescoço espichado, a cabeça baixa e a flor entre os belfos.

            Simplório e chão universo e uma espera plena de indagações que os acertos narrativos de Yamandú Rodrigíguez, conhecedor de seu ofício, fazem transcender do anedótico para revelar as tão humanas incertezas e esperanças.

 

 

domingo, 10 de fevereiro de 2008

O domingo de Isidora


            Yamandú Rodriguez, poeta, dramaturgo e narrador uruguaio, começou a escrever seus poemas em fins de 1910. Foram entusiasticamente publicados em jornais e revistas. Logo, se dedicou ao gênero teatral em versos e com 1810 e El Matrero teve grande sucesso. Porém, foram seus relatos, também  grandemente difundidos em Buenos Aires, cuja grande qualidade vai a par com uma produção sui-generis – vivia de seus escritos e houve períodos em que escrevia um conto por dia – que lhe propiciaram esse lugar de destaque na Literatura rio-plantense. Bichitos de luz (1925), Cansancio (1927), Cimarrones, Humo de marlo (1944) e Poesia completas (1953) foram seus principais títulos publicados. Em 1969, doze anos depois de sua morte, um amigo – igualmente grande poeta e narrador, Serafin J.García – seleciona seis de seus contos sob o título Cuentos escogidos, volume que foi editado pela Disa de Montevidéu. Todos têm como cenário, personagens, e temas o homem do interior que Yamandu Rodriguez embora vivendo quase sempre na capital, retrata excepcionalmente em narrativas que também se nutrem de  um inigualável conhecimento da natureza humana, tanto quanto demonstram a força de seu fazer literário.


            Em “Domingo”, o penúltimo  relato da coletânea, é a expressão do que acontece em algumas poucas horas  num rancho perdido no meio do campo onde vivem o avô e sua neta. Ele, de nome Baesa, veterano de muitas revoluções e escaramuças militares que, mau grado feitos e valentias foi esquecido como um tenente qualquer. Quando envelheceu, sozinho, pediu à filha – lavadeira que sustentava o marido e seis filhos – que lhe mandasse um dos guris para companhia. Foi Isidora, sua neta de doze anos que chegou com a pequena trouxa de roupa. E ali, fazendo as tarefas de casa, vendo o avô a descansar,  fica a menina. Com seu cabelo preto e seus olhos grandes e luminosos, não é bonita mas o conjunto agrada. E o avô já pensa que um dia irá casar e ir embora. Já com seus quinze anos vividos no ermo e sem quase nada para fazer, ela espera o domingo como se pudesse ser um dia diferente. E, assim ele se torna diante de sua expectativa. Sobre essa expectativa é que o relato se faz. Entre o momento em que o avô acorda da sesta e o apagar do dia. Enquanto o avô dorme, Isidora começa a se arrumar e leva nisso duas horas: lava o rosto ( e até as orelhas e o pescoço), escolhe a cor da fita que vai por no cabelo, cobre o rosto de pó de arroz, desembaraça o cabelo, põe o vestido  branco, passa os dedos úmidos nas sobrancelhas e calça os sapatos que tanto lhe machucam os pés. Quando o avô acorda, não tem tempo para cevar-lhe o mate, tampouco para tomá-lo. Está pronta para o domingo. Pega um pedaço de pão e a cadeira e vai para a frente da casa, numa sombra, o mais perto possível da estrada. No colo, põe o lenço pra que as migalhas não caiam no chão. O avô chega com seu banco e senta perto dela. Ficam em silêncio. E, quando ele pergunta pela galinha no choco, Isidora não se interessa: é conversa de segunda feira. Ali, naquela hora, ela vive para a estrada feiticeira, para o horizonte aberto num rumo e ameaçador no outro, para a promessa que sobe de toda a paisagem.O que será  que espera? Uma visita, um presente, um acontecimento desacostumado? Ainda o ignora. Sente que está em marcha e o procura pela estrada mais deserta do que nunca.  Espera e a tarde avança. O zaino velho se aproxima da porteira e passo a passo vai se chegando a pastar. Uma a uma, as galinhas se acomodam na árvore onde dormem.Isidora continua olhando para longe a paisagem opaca e com a insistência do avô, pedindo para jantar, se rende. Arrasta a cadeira para dentro, acende o lampião troca  o vestido pelos trapinhos de trabalho e só deseja ver chegar segunda feira e os outros dias da semana que faltam pra que chegue domingo.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

O Poeta e seus pássaros

             Nas primeiras páginas de Confieso que he vivido, Pablo Neruda lembra a emoção sentida diante do ninho de pássaro silvestre, tecido com musgo e pequenas plumas que tinha dentro uns maravilhosos ovinhos cor de turquesa. Emoção que se mescla a outras, próprias da infância e que irá perdurar ao longo de sua vida como o atestam tantos poemas. E que se renova ao ouvir os cantos dos pássaros, ao vislumbrá-los e persuasiva e plena de beleza se mostra no livro Arte de pájaros, publicado em 1966. A obra se compõe de uma Introdução, o poema “ Migración” e do Epílogo cujo título é  “El poeta se despide de los pájaros”. Entre eles, três partes: “Pajarintos” “Intermédio e “ Pajarantes. A maioria dos poemas da primeira e da segunda parte trata do pássaro que lhe dá o título. Num ou noutro, o Poeta se dispersa. Quando, por exemplo, fala da árvores, cuja abundante folhagem foi caindo e cada broto aprendeu a voar. No Epílogo, sintetiza, quase apenas mencionando, os pássaros sobre os quais poetou, em versos que deles fazem pequenas jóias ao dizer de suas cores, formas, movimentos, trinados. Um olhar que, na verdade, pouco se pousa na cor das plumagens: pequeno deus amarelo, peito vermelho, plumagem de pimenta, roseira rosa de seu pescoço. Tampouco se detém muito nas suas formas. Do flamengo diz: Era seu corpo feito de plumas, eram de pétalas suas asas, / eram uma rosa que voava. E da garça: A neve imóvel tem 2 pernas longas na lagoa. E do pintassilgo: como uma pluma num raio / passou, pequena criatura. O movimento dos pássaros é que, principalmente, o encanta e o seu trinado. Como num relato, um pássaro cruza, desce, dança, sobe; outro,  assim se manteve no céu / com duas asas, duas claridades e, ainda, eis que de repente um movimento / uma minúscula bandeira, / uma escama do arco íris.
            Misterioso, quase sempre, um trinar: trinou seu desvario e suas noticias de cristal, ele rompe com seu grito de água, mil anos de longos silêncios; grita com a voz da água, canta sua lânguida canção, como uma gota ou uma uva / ou uma flecha que tremeu.
 
Se, na maioria  dos poemas o Poeta esboça o pássaro e seu movimentos, em alguns, ele se inscreve como aquele que vê, ouve e, sobretudo, se emociona com a beleza do efêmero. No poema “Codorniz”, lembra: vi resvalar com sua formosura / uma sombra, uma forma, uma ave / uma fruta, uma flor de plumas, uma pêra pássaro fruta e apenas a pode ver que a visão se dissipa e ele permanece com o crepúsculo / com a fumaça, / o pó e a noite, / com a solidão do caminho. Naquele que dedica ao flamengo, retorna à infância ( criança eu era, Pablo Neruda), relembra a honra que teve ao ver o flamengo pousar na água como uma nave de nácar e nada do que viveu, depois, impediu que a  ave ou anjo indelével estivesse ausente de sua alma. Como os pássaros que o Poeta entrelaça com o vento, a chuva, o sol, a lua, as folhas e eterniza no seu verso para este mundo que se degrada como lamenta em Pomba-trocaz”: Eram minha família selvagem [...] e agora por aqueles bosques / foi embora da árvore minha família, ninguém me espera voando. / Parece que somente restam / algumas árvores queimadas.

 

 

 

domingo, 27 de janeiro de 2008

O látego de permeio


            Em 1969, foi publicado pela Edinova do Rio de Janeiro, com seu título original, Huasipungo, termo que significa parcela de terra outorgada pelo dono do latifúndio à família indígena que a cultiva nos momentos que o trabalho devido ao patrão lhe deixam livre. É difícil, dada as dimensões do país, seguir a fortuna que teve esse romance de Jorge Icaza no Brasil e até mesmo conhecer os motivos que levaram a sua tradução. Na verdade, se trata de uma obra, extremamente forte, tanto pela sua história como pela maneira como é relatada e dela não está distante Hijos del viento (Plaza y Janes, Barcelona, 1973). Seu título se completa com a palavra indígena huairapamushcas, cujo significado é gente que aparece trazida pelo vento. O escritor equatoriano, neste romance, oferece instantâneos de um cenário rude nos seus desfiladeiros a quatro mil metros de altura, o esboço de um povoado, monte de choças, casas pardas entre taipas desmoronadas e de sua igreja monumental no sarcasmo de torres brancas, da casa do rico proprietário com suas paredes de adobe. Igualmente, os personagens continuam a ser os índios submissos e miseráveis, o capataz cruel e desonesto, o padre, criador de galos de briga e conivente com os que lhe propiciam pecúnia para a igreja e para seus gastos. Também, o trato entre os índios e o patrão que tem, de permeio, o látego de três correias enroscado como serpente no cabide do quarto. Mais do que a sua existência, porém, guiará o comportamento do novo dono das terras, o costume antigo de considerar os índios que trabalham para ele, absolutamente desprovidos de valor. Se lhes dirige a palavra o faz aos gritos e com termos ofensivos: índio porco, sem vergonha, ladrão,  burro; pelo menor gesto que lhe desagrada, usa do açoite que não poupa o corpo e tampouco o rosto. Assim o faz com a jovem índia que se aproxima para tirar-lhe as botas porque dela sente nojo; assim o faz, ainda que sem provas, com o índio acusado de roubar gado; e com o seu capataz ao comprovar seus furtos e perfídias, flagelando-o nas costas, nos braços, no rosto. Nenhum índio coloca em dúvida ser ele o dono das terras, das matas, dos animais, das águas e deles mesmos. E de tudo ele se considera dono:  das vacas, dos cães, dos galpões, das árvores, do rio, da vida e da morte dos índios, da jovem índia que ele acossa no meio do mato. E, desse mesmo jeito, quer ser o seu capataz. Embora alijado do mando, não quer se privar do que já havia roubado do velho patrão e do poder que lhe era outorgado, usado contra os de sua raça. Justifica sua opção, lembrando que o primeiro dono das terras as vendera para os índios de quem as havia roubado; e que, muito antes, chegados por mar, os homens haviam despojado os índios  de tudo e o que foi pior, lhes deixando a vida. Esses fiapos de vida, Jorge Icaza torna a tecer na ficção.
            Dez anos antes, no seu livro El fabuloso reino de Quito, o historiador Jorge Carrera Andrade registrava o testemunho indígena: Os homens brancos devoram tudo o que encontram, consomem a própria terra, mudam o curso dos rios, [...] procuram ouro e prata, jamais estão satisfeitos, caçando, guerreando, matando-se uns aos outros, roubando uns aos outros, jurando em vão, jamais dizendo a  verdade.

domingo, 20 de janeiro de 2008

No marco do tempo


 

            O capítulo III tem por título “A ameixeira do Japão”, uma árvore que foi, no dizer de Érico Veríssimo, no primeiro volume de Solo de Clarineta (Porto Alegre, Globo, 1974), como o marco do tempo da infância e uma entidade importante de sua mitologia particular. Ele ainda morava em Cruz Alta, cidade onde nasceu, na casa que tinha ao lado a farmácia cujo dono era seu pai e, entre as quais, num alto canteiro era a única árvore existente. O autor gaúcho lembra do amor que tinha pela árvore e do desejo de estar perto quando precisava de solidão para imaginar, para viver o mundo de faz de conta. O seu nome, o conduzia ao Império do Sol Nascente que tinha conotações românticas para ele nos seus samurais, mandarins, pagodes, gueixas de olhos em forma de amêndoas. Recostado no seu tronco, aos sete anos, folheava um livro de guerra, escrito em francês, cujas imagens o encantavam e o faziam tomar partido pelo Japão que lutava contra a Rússia. Relembrando esses momentos, se pergunta se a sua escolha não era influenciada pela árvore que junto com ele, olhava as figuras. Mais tarde, já adulto, ficou sabendo que a árvore que ele conhecia como ameixeira do Japão era uma nespereira. Com um olhar já então mais realista diz que tinha “um porte médio, não era das mais bonitas nem no desenho nem na cor. Produzia frutos amarelados, de forma oval, com caroços graúdos e polpa parecida com a do pêssego. Na sua lembrança, a árvore revive junto com as raízes, o tronco, os galhos e as folhas e até com os insetos e passarinhos que voavam ao redor dela. E não o deixa esquecer o sabor algo ácido de seus frutos que somente se dissolvem numa doçura lânguida quando ficam murchos. É com a nespereira que ele comparte a leitura de O Tico –Tico, seu cheiro mágico de tinta e de papel de jornal e das obras de Júlio Verne que parecia interessar à nespereira, lidas por cima de seu ombro. Como a casa do major Mumro, uma casa sobre rodas puxadas por um elefante de aço, movido a vapor, a nespereira passou a ser a sua casa a vapor e, um dia, ele a fez projétil que o levou a dar uma volta ao redor da Lua. E, quando um pequeno pássaro cantou, pousado no seu galho, para ele não foi uma simples corruíra e sim um exótico e multicolorido pássaro da misteriosa Índia.

            Outras árvores lhe estiveram próximas: as laranjeiras, as bergamoteiras, os caquizeiros, os pessegueiros que faziam parte do pomar do Colégio Cruzeiro do Sul, onde, em Porto Alegre, ele foi estudar em regime de internato. Todos os seus frutos, porém, eram inacessíveis aos alunos, proibidos, sob pena de castigo, de entrar no pomar. Isto não  parece  emocioná-lo pois é na terceira pessoa que registra viverem os internos como anjos caídos, expulsos do Jardim das Delícias, olhando de longe com gula e frustração os vermelhos caquis, as laranjas e as bergamotas cor de sol.

            Porque é à ameixeira do Japão de sua infância que se prende Érico Veríssimo. E se o terceiro capítulo assim se chama (e não a nespereira) é para ser fiel ao menino que ele foi.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O poeta e seu tempo


            Há três anos atrás, Juan Gelman recebia o Prêmio Reina Sofia de Poesia Iberoamericana. O prêmio era uma razão a mais para comemorar. A outra, o término de uma longa batalha judicial em que ficou reconhecido o direito de sua neta, nascida no Uruguai, durante a prisão ilegal da mãe, de usar os sobrenomes dos pais. Agora, neste ano que findou, recebeu, também da Espanha, o Prêmio Cervantes, considerado o mais importante das letras hispânicas.

            Nascido em 1930, em Buenos Aires, filho de imigrantes ucranianos, desde muito jovem militou no Partido Comunista e como participante da organização guerrilheira Montoneros, foi, duramente, perseguido pela ditadura Argentina e  obrigado a se exilar. A par de seu trabalho jornalístico, Juan Gelman é autor de muitos títulos – o primeiro, Violin y otras cuestiones, 1956 – e seus versos testemunham o tempo em que vive e as perenes inquietações dos homens.

            De 1993, é sua Antologia Personal, cujos cento e dezenove poemas foram tirados dos livros publicados ente 1962 e 1968. Neles, estão ausentes as letras maiúsculas e salvo um ou outro ponto de exclamação, por vezes, inundando alguns poemas, o ponto de interrogação. Ele está em acorde com o quê o poeta afirma na Apresentação do livro: as suas obsessões continuam na aberta escuridão de seu sentido, obrigando-o a procurar respostas que jamais encontra ou imagina encontrar. Assim, o poema “Glorias”. Colmado de perguntas que alimentam todos os versos da primeira estrofe: era loira a pulpeira de Santa Lucia?/ tinha os olhos azuis? / e cantava como a cotovia a pulpeira? / refletiam seus olhos a glória do dia? / era ela a glória do dia sua imensa luz?  Seguem-se, as afirmativas: são perguntas inúteis para este inverno que não podem ser lançadas ao fogo, não são próprias para esquentar as pessoas, nem o país gelado de sangue. Logo, o retorno à pulpeira e a seus atributos, à suavidade que instaurou e as razões de possíveis  descaminhos: quem não ia se perder nessa noite? Tal história poderia ser contada e, também, outras, igualmente tristes. Então, o poeta retorna às perguntas: não está correndo o sangue dos dezesseis fuzilados em Trelew, por suas ruas e pelas outras ruas do país, não está correndo sangue e existe um lugar do país onde o sangue não esteja correndo? Tampouco a pulpeira é poupada, pois outras perguntas são enunciadas. Na verdade, são afirmações do que acontecia no país: e cheia de sangue a pulpeira e seus olhos azuis afogados em sangue? / e a cotovia afundada no sangue e glória do dia /com as asas empapadas de sangue sem poder voar? / não há sangue na penumbra de teus seios amada? e que o levam, novamente aos fuzilados de Trelew : os presos políticos que, em agosto de 1972, fugiram de uma prisão e, forçados a se entregarem, confiaram nas palavras que lhes garantiam serem poupados. Uma semana depois eram mortos. O sangue deveria ser recolhido para que fosse possível escutar o quê dizia e o quê cantava e para propiciar-lhe o luto e a lembrança.

            A penúltima estrofe repete: o país está sendo regado com sangue o que induz à súplica: Oh! sangue derramado, conduz-nos ao triunfo. A última estrofe, sem referência explícita, se faz em versos que entrelaçam as palavras chaves do poema, sugerindo uma louca esperança: como cotovia de seus seios caía e / como sangue para apagar a morte e / como sangue para apagar a noite e/ como sol como dia.

domingo, 6 de janeiro de 2008

A imposição


            É uma vasta galeria de personagens que vai se apresentando ao longo da narrativa. A não ser, a principal, o louco do Cati, cuja designação dá nome à obra (O Louco do Cati, Porto Alegre, Globo, 1942), todas tem – ou mais, ou menos – uma presença passageira. Talvez o que Henri James chame de fio: aparecem somente para assumir uma função no enquadramento causal das ações. Nesta obra de Dyonélio Machado, são personagens que se revelam por escassos dados a respeito de seu físico, por um gesto, pela expressão de um sentimento, por um diálogo em que predominam as zonas de sombra. Raras vezes, há menção ao que vestem. E, quando tal acontece é, apenas, uma breve referência: algo para determiná-lo tenha ele uma efêmera presença ou possua um imprescindível desígnio narrativo. Algum detalhe do vestir: estar em mangas de camisa como o homem que vendia gasolina na beira da estrada: emponchados, agasalhados, como alguns em Santa Maria de noite chuvosa e ruas desertas entravam no café; usar calção de banho como Norberto ao chegar no mar; viajar de calção com o casaco de pijama por cima como seus companheiros de viagem.

            Com mais algum detalhe, a referência ao traje de um personagem-figurante: o sujeito baixo, as pernas finas, calçadas com quilote branca que sobressaía muito da cor escura das botas altas; o rapaz que viajou de avião com os demais e não tinha nenhum agasalho de inverno sobre a roupa barata; o praieiro, um homem de bombacha estreita (parecia calça de guri) em mangas de camisa, chapéu de palha; o coronel que trajava quilote, perneiras, casaco de couro com fecho eclér e levava com ele, fazendo questão de carregar, uma capa gris: era à prova d’água e ele sempre a usava nos trabalhos do campo, nas viajadas a cavalo. Ao descerem todos do avião e se dirigirem para a casa da fazenda, o vento irá abri-la, como, também, a do comandante Amilívio que era preta com botões dourados. Dava-lhe, na tarde cinzenta,  um aspecto lendário..., levando o louco do Cati, assustado, a fugir em disparada o quê foi decisivo no desenrolar da narrativa.


            Menos inocentes, outras menções de Dyonélio Machado ao que vestem seus personagens. O delegado, atendendo as partes, era pessoa de grande importância. Trajava roupa leve. Face pálida (moreno pálido). Todo ele muito bem cuidado, muito distinto. Um anel de bacharel na mão bonita, bem tratada. E policiais fardados acompanhavam Norberto e o louco do Cati, presos, na viagem para Florianópolis; seus companheiros de cela, no Rio de Janeiro, vestiam só calção e tamancos ou casaco de pijama e calção.

            No entanto, é no capítulo “O Professor da Universidade” que a menção à roupa adquire, no entrelaçamento com outras expressões, um significado não mais irônico ou trocista porém, tristemente mordaz e crítico. Num anfiteatro, o professor Castel e seus assistentes, semanalmente, davam consulta geral, assistida pelo corpo clínico, sempre numeroso. Diante de todos e com a porta aberta, o doente se despia. Às vezes, pessoas da família do paciente – invariavelmente de pé, afastadas, a face triste, as mãos ocupadas com as peças de roupa que ele ia despindo e não atinando onde largar. O diagnóstico era dado, os interessados reviam suas anotações e o doente tornava a vestir-se, ali, diante de todos.