domingo, 6 de janeiro de 2008

A imposição


            É uma vasta galeria de personagens que vai se apresentando ao longo da narrativa. A não ser, a principal, o louco do Cati, cuja designação dá nome à obra (O Louco do Cati, Porto Alegre, Globo, 1942), todas tem – ou mais, ou menos – uma presença passageira. Talvez o que Henri James chame de fio: aparecem somente para assumir uma função no enquadramento causal das ações. Nesta obra de Dyonélio Machado, são personagens que se revelam por escassos dados a respeito de seu físico, por um gesto, pela expressão de um sentimento, por um diálogo em que predominam as zonas de sombra. Raras vezes, há menção ao que vestem. E, quando tal acontece é, apenas, uma breve referência: algo para determiná-lo tenha ele uma efêmera presença ou possua um imprescindível desígnio narrativo. Algum detalhe do vestir: estar em mangas de camisa como o homem que vendia gasolina na beira da estrada: emponchados, agasalhados, como alguns em Santa Maria de noite chuvosa e ruas desertas entravam no café; usar calção de banho como Norberto ao chegar no mar; viajar de calção com o casaco de pijama por cima como seus companheiros de viagem.

            Com mais algum detalhe, a referência ao traje de um personagem-figurante: o sujeito baixo, as pernas finas, calçadas com quilote branca que sobressaía muito da cor escura das botas altas; o rapaz que viajou de avião com os demais e não tinha nenhum agasalho de inverno sobre a roupa barata; o praieiro, um homem de bombacha estreita (parecia calça de guri) em mangas de camisa, chapéu de palha; o coronel que trajava quilote, perneiras, casaco de couro com fecho eclér e levava com ele, fazendo questão de carregar, uma capa gris: era à prova d’água e ele sempre a usava nos trabalhos do campo, nas viajadas a cavalo. Ao descerem todos do avião e se dirigirem para a casa da fazenda, o vento irá abri-la, como, também, a do comandante Amilívio que era preta com botões dourados. Dava-lhe, na tarde cinzenta,  um aspecto lendário..., levando o louco do Cati, assustado, a fugir em disparada o quê foi decisivo no desenrolar da narrativa.


            Menos inocentes, outras menções de Dyonélio Machado ao que vestem seus personagens. O delegado, atendendo as partes, era pessoa de grande importância. Trajava roupa leve. Face pálida (moreno pálido). Todo ele muito bem cuidado, muito distinto. Um anel de bacharel na mão bonita, bem tratada. E policiais fardados acompanhavam Norberto e o louco do Cati, presos, na viagem para Florianópolis; seus companheiros de cela, no Rio de Janeiro, vestiam só calção e tamancos ou casaco de pijama e calção.

            No entanto, é no capítulo “O Professor da Universidade” que a menção à roupa adquire, no entrelaçamento com outras expressões, um significado não mais irônico ou trocista porém, tristemente mordaz e crítico. Num anfiteatro, o professor Castel e seus assistentes, semanalmente, davam consulta geral, assistida pelo corpo clínico, sempre numeroso. Diante de todos e com a porta aberta, o doente se despia. Às vezes, pessoas da família do paciente – invariavelmente de pé, afastadas, a face triste, as mãos ocupadas com as peças de roupa que ele ia despindo e não atinando onde largar. O diagnóstico era dado, os interessados reviam suas anotações e o doente tornava a vestir-se, ali, diante de todos.

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