domingo, 20 de janeiro de 2008

No marco do tempo


 

            O capítulo III tem por título “A ameixeira do Japão”, uma árvore que foi, no dizer de Érico Veríssimo, no primeiro volume de Solo de Clarineta (Porto Alegre, Globo, 1974), como o marco do tempo da infância e uma entidade importante de sua mitologia particular. Ele ainda morava em Cruz Alta, cidade onde nasceu, na casa que tinha ao lado a farmácia cujo dono era seu pai e, entre as quais, num alto canteiro era a única árvore existente. O autor gaúcho lembra do amor que tinha pela árvore e do desejo de estar perto quando precisava de solidão para imaginar, para viver o mundo de faz de conta. O seu nome, o conduzia ao Império do Sol Nascente que tinha conotações românticas para ele nos seus samurais, mandarins, pagodes, gueixas de olhos em forma de amêndoas. Recostado no seu tronco, aos sete anos, folheava um livro de guerra, escrito em francês, cujas imagens o encantavam e o faziam tomar partido pelo Japão que lutava contra a Rússia. Relembrando esses momentos, se pergunta se a sua escolha não era influenciada pela árvore que junto com ele, olhava as figuras. Mais tarde, já adulto, ficou sabendo que a árvore que ele conhecia como ameixeira do Japão era uma nespereira. Com um olhar já então mais realista diz que tinha “um porte médio, não era das mais bonitas nem no desenho nem na cor. Produzia frutos amarelados, de forma oval, com caroços graúdos e polpa parecida com a do pêssego. Na sua lembrança, a árvore revive junto com as raízes, o tronco, os galhos e as folhas e até com os insetos e passarinhos que voavam ao redor dela. E não o deixa esquecer o sabor algo ácido de seus frutos que somente se dissolvem numa doçura lânguida quando ficam murchos. É com a nespereira que ele comparte a leitura de O Tico –Tico, seu cheiro mágico de tinta e de papel de jornal e das obras de Júlio Verne que parecia interessar à nespereira, lidas por cima de seu ombro. Como a casa do major Mumro, uma casa sobre rodas puxadas por um elefante de aço, movido a vapor, a nespereira passou a ser a sua casa a vapor e, um dia, ele a fez projétil que o levou a dar uma volta ao redor da Lua. E, quando um pequeno pássaro cantou, pousado no seu galho, para ele não foi uma simples corruíra e sim um exótico e multicolorido pássaro da misteriosa Índia.

            Outras árvores lhe estiveram próximas: as laranjeiras, as bergamoteiras, os caquizeiros, os pessegueiros que faziam parte do pomar do Colégio Cruzeiro do Sul, onde, em Porto Alegre, ele foi estudar em regime de internato. Todos os seus frutos, porém, eram inacessíveis aos alunos, proibidos, sob pena de castigo, de entrar no pomar. Isto não  parece  emocioná-lo pois é na terceira pessoa que registra viverem os internos como anjos caídos, expulsos do Jardim das Delícias, olhando de longe com gula e frustração os vermelhos caquis, as laranjas e as bergamotas cor de sol.

            Porque é à ameixeira do Japão de sua infância que se prende Érico Veríssimo. E se o terceiro capítulo assim se chama (e não a nespereira) é para ser fiel ao menino que ele foi.

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