domingo, 17 de fevereiro de 2008

O ofício


 
             No seu prólogo a Tacuruses, um dos mais belos livros de poemas da Literatura Gauchesca, Victor Perez Petit diz que o problema do destino do homem humilde dos campos uruguaios palpita, constantemente, nessas páginas de Serafin J. García, o que também pode ser dito a respeito de seus contos. E, assim, dos relatos de Yamandú Rodriguez o que lhes determinou o sucesso, tendo sido sua obra espalhada por várias revistas, entre as quais algumas de Buenos Aires. Porém, nem tudo o que escreveu, salvo o volume de suas Poesias Completas (1953), foi compilado em livro. Em 1969, apareceu Cuentos escogidos, um pequeno livro que reúne seis contos que jaziam perdidos nas páginas de amareladas revistas, que, na opinião de Serafin J. Garcia que os selecionou, se constituem os melhores dentre os que escreveu. Na verdade, uma perícia narrativa, demonstrada ao construir seu relato a partir de um quase nada. Em “Domingo”, o penúltimo da coletânea, se trata, apenas da tarde de domingo que o avô e neta passam, sentados à beira da estrada, em pleno ermo que é onde está o rancho onde vivem. Há todo um preparativo que preenche o tempo da menina-moça a partir da hora em que termina de arrumar a cozinha até aquela em que o avô se levanta da sesta. Isidora (assim ela se chama) já se considera pronta para ir sentar na frente da casa à espera de algo. Sinuosa, a narrativa se enleia no passado. Episódios da vida do avô: suas lides guerreiras, empreendidas mais por desenfado do que por convicção partidária, com o batismo de fogo acontecido não por valentia, mas por não ter dominado o cavalo que o fez se expor demais ao inimigo. Três lembranças da mulher: quando a conheceu, nas ocasiões em que ela descobriu seus amorios com as comadres e a noite que passou galopando para encontrá-la com vida e ao chegar já estava sendo velada. Muito pouco, de Isidora. Aceitou ir para a casa do avô que prometia colégio e roupa e nos três anos que se passaram ganhou só um vestido e as tarefas da casa para fazer. Porém, ao se deter em breves cenas que animam um cenário de singelezas, é um relato cujo ritmo permanece ágil: as galinhas que se abrigam do sol na efêmera sombra do rancho e ali ficam com os bicos abertos ou a que seguida dos pintainhos se aproxima de Isidora, pula no seu colo, desce para o chão, apanha as migalhas de pão e as reparte; o cachorro baio, preguiçoso e sem graça que vai junto com a dona em busca de minhocas para alimentar as calhandras e à tardinha volta triste, com cheiro de zorrilho e tenta se refugiar na sala de onde é tocado e só lhe resta ir se deitar no pátio; a vaca “hosca”, sempre adiantada para a ordenha que Isidora faz com a cabeça apoiada no seu corpo morno. Chamado por Isidora indignada, o velho cavalo que abandonara o capim que pastava para se aproximar da janela e arrancar a flor da malva: surpreendido em falta, gira sobre as patas e fica imóvel de frente para a estrada com o pescoço espichado, a cabeça baixa e a flor entre os belfos.

            Simplório e chão universo e uma espera plena de indagações que os acertos narrativos de Yamandú Rodrigíguez, conhecedor de seu ofício, fazem transcender do anedótico para revelar as tão humanas incertezas e esperanças.

 

 

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