quarta-feira, 2 de fevereiro de 1994

Raízes


... sou das vinhas negras de par­ral...Pablo Neruda
          Em 1964 foi publicado El memorial de Isla Ne­gra pela Editorial Losada de Buenos Aires. Uma autobiografia escrita em versos cuja nota maior, apesar das indignações e das melancólicas reflexões que o olhar para o mundo faz emer­gir é a alegria de viver, a felicidade de criar.

          Pablo Neruda o escreveu, dizem, para festejar os seus sessenta anos e o fez, transformando em poesia as lembranças do passado e as inquietações que o levaram pelos caminhos do mundo.

          O livro está feito em cinco partes: Onde nasce a chuva, A lua no labirinto, O fogo cruel, O caçador de raízes, Sonata triste e se inicia com o poema “Nascimento”. Nas suas quatro primeiras estrofes, a voz de um narrador, anunciando o nascimento de um homem entre tantos outros e que entre muitos, viveu. Mas, ele diz, a história não está aí e sim na terra, terra central do Chile.

          Esse deslocamento do foco de interesse, do homem para o espaço físico, adquire maior importância na se­gunda estrofe de três versos onde aparece o topônimo Parral ligado àquele que nasceu no inverno.

          Delineia-se nesse verso, a presença do poeta, nascido no dia 12 de julho.

          Na estrofe seguinte, o foco de interesse ainda se mantém fixo no espaço para narrar a sua destruição pelo terremoto do qual se salvaram alguns homens e o vinho. Do pó em que tudo se transformou, somente as parreiras perse­veraram em dar uva e vinho.

          Assim, como já fora feito no Canto geral, o tom épico desaparece e surge o eu confessional, intensamente lírico. Um eu que se submerge em busca do passado mas nele o que está inscrito perdura sem imagens dos rostos, das figu­ras, das paisagens.

          Nenhum apelo ou desejo imenso - esse querer do filho em vislumbrar o desconhecido rosto materno, ultra­passa as barreiras do tempo e da morte: E como nunca vi / seu rosto / a chamei entre os mortos, / para vê-la, / mas como os outros enterrados, / não sabe, não ouve, não respon­deu nada, / e ali ficou sozinha, sem seu filho, / arredia e evasiva / entre as sombras.

          Dessa solidão que imagina - a mãe que mal ti­vera nos braços o filho antes de morrer tuberculosa - e da sua, ao perdê-la, sem ao menos ter lembranças de seus traços, parte a procura do passado.

          Retoma, então, a presença esboçada na segunda estrofe - Parral se chama o lugar / do que nasceu / no in­verno e o topônimo primeiro de sua vida de caminhante para definir raízes que se mesclam na terra e na mãe que nessa terra está sepultada: E dali, sou, daquele / Parral de terra trêmula, / terra carregada de uvas / que nasceram / de minha mãe morta.

          A trajetória em busca do passado - a figura do pai, da mulher que lhe serviu de mãe, as descobertas do menino, os amores, a consciência política - continuam a se transformar em verso. Sobre a terra pulverizada e desfeita pelo terremoto e sobre o desconhecido rosto da mãe já, então, o poeta se cala até que num dos poemas do final de sua vida, entre tantos que falam de solidão, morte e desesperança, res­surgem as raízes, raízes alastradas pelas terras do Chile.

          Invicto, como que invicto, ele reafirma: Eu sou de Iquique, / sou das vinhas negras de Parral, / da água de Temuco, / da terra delgada, / sou e estou.

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