domingo, 13 de fevereiro de 1994

As rebeldes

          Leila Mezan Algranti inicia o seu livro, Hon­radas e devotas: mulheres da colônia (José Olympio, 1993), com a história da infanta Joana que recusou três valiosos ca­samentos para se encerrar num convento. E reclusa, dos de­zoito aos trinta e seis anos, passou os seus dias. Morreu dez anos antes da descoberta do Brasil sem que então, ou mais tarde, fossem desvendados os mistérios dessa escolha que é tida pelos historiadores ora pela única possível diante de uma honra maculada ora pela obediência a uma irresistível vo­cação religiosa.
          E assim como a história da infanta Joana, fi­lha de Afonso V permanece obscura, ainda nos dias de hoje, uma sem número de outras histórias femininas continuam sem se desvendar.
          A proposta de Leila Mezan Algranti, historia­dora paulista, professora da Unicamp neste seu livro é então, a partir do estudo dos recolhimentos e conventos do século XVIII, desvendar algo desse universo que o povoava.
          Certamente, a sociedade da época se descobre nos registros policiais ou cartorários, nos arquivos que ser­viram de fonte para as pesquisas sobre a mulher brasileira na colônia.
          No entanto, adentrar-se nestes caminhos femi­ninos é comprovar lacunas e ausências que não são suficien­tes, porém, para eludir aquelas poucas talvez, que foram com­bativas e resistiram à dominação masculina.
          Muitas vezes, para fugir dela, submetiam-se à vida do claustro que, eventualmente, podia lhes resultar mais leve.
          As repetidas advertências, que procuram evi­tar algum abrandamento na vida que se pretendia austera, são disso a prova.
          Essas advertências, assim como pastorais, portarias dos superiores se referem ao desrespeito às normas que determinavam o cotidiano dos conventos. Visavam impedir a entrada dos visitantes, limitar as conversas, proibir a pre­sença nas janelas que davam para a rua, legislar sobre o vestuário.
          Na verdade, tratava-se de um cotidiano rigo­rosamente ordenado numa divisão temporal de horas - a maior parte delas dedicada à oração - marcadas por toques de sino separando o tempo individual do tempo comunitário e buscando uma ocupação constante para afastar o perigo da ociosidade malsã.
          Mas, regras e cuidados não foram suficientes - como bem o demonstraram o testemunho dos escritos - para evitar a presença de visitas, as conversas no parlatório e nas janelas, o vestir trajes feitos com tecidos nobres e o uso de acessórios de ouro.
          Proibições que demonstram não ser pequeno o número de mulheres que, induzidas ou obrigadas a viver en­clausuradas, procuravam levar uma vida que se assemelhasse àquela que haviam deixado.
          O estudo de Leila Mezan Algranti - rico em dados sobre a população dos conventos da região sudeste do Brasil colonial - revela que os cânones patriarcais, regentes das relações familiares e sociais que permitiam aprisionar filhas e mulheres nos conventos, não conseguiam anular total­mente a ânsia de viver.
          Assim, quando trancafiadas ou abandonadas elas buscavam, muitas vezes, fugir ao que lhes era imposto. No limitado horizonte feminino desses tempos coloniais era breve, porém, o caminho que podiam percorrer, até porque transgressões e punições andavam juntas.
          Quebrar silêncios, buscar companhia, repetir rituais profanos eram uma iniciação à rebeldia.
          Resistência inconsciente que, certamente, pouco ajudou esse prisioneiro mundo feminino, mas que, por outro lado, não permitiu que fosse total a supremacia opres­sora dos homens.

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