Luciano Figueiredo se propôs
estudar os caminhos trilhados pela condição feminina no Brasil
e O Avesso da memória: cotidiano e
trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII que a José Olympio acaba de
publicar é disso um resultado.
Uma revisão histórica que
deixa evidente quão distante foi a vida das mulheres nessa Minas colonial
daquela que a historiografia tradicional lhe atribui.
Escravas ou forras, faziam
parte dos desclassificados sociais
que a exploração do ouro produziu.
Luciano Figueiredo as
enumera: vendedoras ambulantes de quitutes, fumo e cachaça; encarregadas de
pequenas vendas; parteiras, doceiras, lavadeiras, costureiras. Ou, se
dedicando à prostituição e à magia.
Mas, ao analisar esse papel
feminino, assíduo e constante e imprescindível, o autor não isolou a mulher do
grupo social em que estava inserida cuja estrutura a levou à únicas atividades
que podia exercer para garantir uma sobrevivência que, na maioria dos casos,
deve ter sido uma reles sobrevivência.
Em O avesso da memória é então, longamente apresentada esta atuação da
prostituta, da alcoviteira, das encarregadas das vendas e das casas de passo,
assim como as atividades que desenvolviam nas irmandades religiosas e a sua
participação no lazer e nos rituais de magia.
Em cada caso, exposta à regulamentação repressivas e às conseqüências advindas das transgressões ou
simplesmente vítimas do abuso de poder.
As vendeiras e as mulheres
que vendiam de tabuleiro eram acusadas de serem responsáveis por contrabando
de ouro e diamantes, prática da prostituição e relacionamento com os quilombos
e pela diminuição da quantia que os escravos deviam pagar ao senhor.
Desnuda-se, então, todo um
processo arbitrário, expresso nas medidas oficiais, evidentemente, a serviço
exclusivo da metrópole: bandos, ordens, editais que pretendiam coibir a
prostituição, o ajuntamento de escravos em danças e batuques, a circulação de
negros pelas vias públicas em determinadas horas, pretensamente no sentido de
evitar comportamentos que se desviassem da moral vigente. Normas que eram
reafirmadas pelas devassas clericais cujo objetivo se constituía, também em
fiscalizar e punir os atos ofensivos dos bons costumes.
Na verdade, uma legislação
cujo intuito foi, principalmente, defender o que era devido ao rei de Portugal.
E isto não tinha limites, haja visto os tributos criados para fazer face aos
dotes de uma infanta ou para a reconstrução de Lisboa, destruída pelo
terremoto.
Entrelaçando-se a preceitos
religiosos pretendia mais facilmente tornar dóceis aos desmandos do poder uma
imensa população a qual eram negadas as condições mínimas para trabalhar
dignamente.
Luciano Figueiredo transcreve
textos que, certamente, são exemplares, no sentido de mostrar como, em nome da
moral eram encobertos interesses outros, como a carta do secretário do
governador de Minas ao rei: quanto mais
ajustados viverem na observação dos
divinos preceitos, mais obedientes serão às leis de Vossa Majestade e melhor se
fará a seu real serviço e arrecadação de sua fazenda [...]
É, óbvio, porém que,
defendendo os interesses da Coroa, os funcionários reais e os membros do clero
não se esqueciam de perseguir, sobretudo, os seus interesses pessoais.
A posse de ilimitados
poderes, lhes permitia fazer o que bem lhes aprouvesse. Não precisavam de leis
para se atribuir o direito de abusar, indiscriminadamente, de quem quer que
fosse.
Assim, diz Luciano
Figueiredo, a grande parte das mulheres
encontrar-se-ia passível de rapto, estupro, despejo de suas moradias,
espancamento ou morte.
No entanto, mais estranho de
que tais atos pudessem ser postos em prática, era o silêncio cúmplice não
rompido, significando tratar-se de algo mais profundo do que simplesmente ter o
poder e dele fazer uso.
Entre tantas outras coisas,
reflete o profundo desprezo de uma classe - a que ordena - pela outra, a que
se submete: o homem dispondo da mulher; o branco, do negro; o rico do pobre.
Um mundo sem harmonia, sustentado por leis e por crenças que poucos ousaram
contestar.
Enquanto isso, os séculos
passam.
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