domingo, 6 de fevereiro de 1994

Mandos e desmandos do tempo do ouro

          Luciano Figueiredo se propôs estudar os ca­minhos trilhados pela condição feminina no Brasil e O Avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII que a José Olympio acaba de publicar é disso um resultado.
          Uma revisão histórica que deixa evidente quão distante foi a vida das mulheres nessa Minas colonial daquela que a historiografia tradicional lhe atribui.
          Escravas ou forras, faziam parte dos desclassificados sociais que a exploração do ouro produziu.
          Luciano Figueiredo as enumera: vendedoras am­bulantes de quitutes, fumo e cachaça; encarregadas de peque­nas vendas; parteiras, doceiras, lavadeiras, costureiras. Ou, se dedicando à prostituição e à magia.
          Mas, ao analisar esse papel feminino, assíduo e constante e imprescindível, o autor não isolou a mulher do grupo social em que estava inserida cuja estrutura a levou à únicas atividades que podia exercer para garantir uma sobre­vivência que, na maioria dos casos, deve ter sido uma reles sobrevivência.
          Em O avesso da memória é então, longamente apresentada esta atuação da prostituta, da alcoviteira, das encarregadas das vendas e das casas de passo, assim como as atividades que desenvolviam nas irmandades religiosas e a sua participação no lazer e nos rituais de magia.
         Em cada caso, exposta à regulamentação re­pressivas e às conseqüências  advindas das transgressões ou simplesmente vítimas do abuso de poder.
          As vendeiras e as mulheres que vendiam de ta­buleiro eram acusadas de serem responsáveis por contrabando de ouro e diamantes, prática da prostituição e relacionamento com os quilombos e pela diminuição da quantia que os escravos deviam pagar ao senhor.
          Desnuda-se, então, todo um processo arbitrá­rio, expresso nas medidas oficiais, evidentemente, a serviço exclusivo da metrópole: bandos, ordens, editais que preten­diam coibir a prostituição, o ajuntamento de escravos em dan­ças e batuques, a circulação de negros pelas vias públicas em determinadas horas, pretensamente no sentido de evitar com­portamentos que se desviassem da moral vigente. Normas que eram reafirmadas pelas devassas clericais cujo objetivo se constituía, também em fiscalizar e punir os atos ofensivos dos bons costumes.
          Na verdade, uma legislação cujo intuito foi, principalmente, defender o que era devido ao rei de Portugal. E isto não tinha limites, haja visto os tributos criados para fazer face aos dotes de uma infanta ou para a reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto.
          Entrelaçando-se a preceitos religiosos pre­tendia mais facilmente tornar dóceis aos desmandos do poder uma imensa população a qual eram negadas as condições mínimas para trabalhar dignamente.
          Luciano Figueiredo transcreve textos que, certamente, são exemplares, no sentido de mostrar como, em nome da moral eram encobertos interesses outros, como a carta do secretário do governador de Minas ao rei: quanto mais ajustados viverem na observação dos divinos preceitos, mais obedientes serão às leis de Vossa Majestade e melhor se fará a seu real serviço e arrecadação de sua fazenda [...]
          É, óbvio, porém que, defendendo os interesses da Coroa, os funcionários reais e os membros do clero não se esqueciam de perseguir, sobretudo, os seus interesses pesso­ais.
          A posse de ilimitados poderes, lhes permitia fazer o que bem lhes aprouvesse. Não precisavam de leis para se atribuir o direito de abusar, indiscriminadamente, de quem quer que fosse.
          Assim, diz Luciano Figueiredo, a grande parte das mulheres encontrar-se-ia passível de rapto, estu­pro, despejo de suas moradias, espancamento ou morte.
          No entanto, mais estranho de que tais atos pudessem ser postos em prática, era o silêncio cúmplice não rompido, significando tratar-se de algo mais profundo do que simplesmente ter o poder e dele fazer uso.
          Entre tantas outras coisas, reflete o pro­fundo desprezo de uma classe - a que ordena - pela outra, a que se submete: o homem dispondo da mulher; o branco, do ne­gro; o rico do pobre. Um mundo sem harmonia, sustentado por leis e por crenças que poucos ousaram contestar.
          Enquanto isso, os séculos passam.

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