domingo, 27 de fevereiro de 1994

O olhar de Isabel

          O autor escreve brilhantemente, tanto no que se refere à elegância da frase quanto nas notações narrativas e no desenho dos caracteres; soube estruturar solidamente a intriga no desenvolvimento dos episódios e no harmonioso equilíbrio dos focos narrativos; inseriu o drama psicológico num largo contexto de história e paisagem, costumes e tipos de civilização.    Assim é definido por Wilson Martins As virtu­des da casa, um dos mais belos romances da literatura brasi­leira.Publicado no ano de 1985, em Porto Alegre, é o quinto livro de Luiz Antonio de Assis Brasil que nele rea­firma a maestria de romancista já revelada em Manhã transfi­gurada e que emerge, fascinante, em cada seqüência de As vir­tudes da casa.
 
          Os seis primeiros capítulos tecem o encontro de Isabel com Felicien, naturalista francês chegado ao ex­tremo sul do país em busca de borboletas e plantas.Filha do dono da fazenda que hospeda o foras­teiro, obediente ao pai que partira para a guerra - Para o francês, o melhor - ela se esmera como anfitriã.

          E o bastante foi o anúncio de sua chegada para se deixar envolver por emoções novas. No serão habitual em que borda as peças de seu enxoval, não se concentra nos pontos, o pensamento querendo se libertar das imagens repeti­das a cada noite: o noivo, o casamento, a vida que levaria. Interrompe o bordado e seu olhar se desprende da agulha, da linha, do risco. Quando segue as tábuas do chão até encontrar o relógio e subir por ele até o vidro e se ver refletida mal sabe que estava a romper com o ritual da casa.
 
          Assim como nessa noite que precede a chegada do forasteiro infringe algo ao interromper o bordado e se contemplar com ousadia, aos poucos, irá erguendo, cada vez mais o olhar.
 
          No encontro com Felicien não ousa fitar-lhe o rosto e apenas pousa os olhos na lapela da casaca, nos bo­tões. Somente tem a coragem de erguer os olhos quando pensa que o pai poderia se agastar se não tratasse bem de seu hós­pede.
 
          Devagar, fita a lapela, a gravata, a camisa e, só então, o rosto. Muito rápido, o suficiente para perce­ber os olhos azuis no rosto cor de ouro, cor de mel e, os torna a voltar para o chão. E, logo, é vencida pela tentação de encarar outra vez o visitante e poder olhar o nariz, os bigodes, a boca.
 
          E, escutando as descrições e as razões vai perdendo o medo de olhar para o seu rosto embora evite bus­car-lhe os olhos. Depois os passeios, as confidências, os gestos contidos aproximando-a do forasteiro numa sucessão emocionada de riscos que a impede de toda reflexão.
 
          Mas a repentina advertência - da mãe, do ir­mão, da escrava? - faz com que retorne à razão e ser ela mesma, submissa ao ritual da casa. Pois quem era para dar-se ao desfrute de estar assim pretendendo magoar a todos na es­tância com seus desatinos? As certezas estavam ali: Tomás, seu casamento se aproximando, o enxoval não terminado, a volta do pai quando a guerra acabasse. Felicien foi só uma sombra pecaminosa, de passagem, como uma provação que Deus Nosso Senhor tivesse mandado para testá-la. De repente, o or­gulho de que não se deixara sucumbir, a virgindade preser­vada. O orgulho de se saber forte como o pai e o irmão espe­ravam que fosse, como ela mesma o queria.
 
          Mas, ao olhar para os campos, eles se mostra­ram definhando, cor de cinza, sem serventia. Isabel se deu conta que o quê assim via era sua própria imagem.
 
          Um caminho que se inicia e que termina ali­mentado pelo olhar feminino. Ousado, submetido, alertado, ele conduz e vai retratando esse universo de verdades e de pre­conceitos e determina-lhe a conduta.
 
          Mais do que um recurso de estilo criado para a construção do personagem e revelar emoções, esse olhar de Isabel expressa o seu súbito despertar para a vida e é teste­munha de grilhões feitos da vontade patriarcal, das crenças, das verdades de cada um dos habitantes da casa.
 
          E no romance há mesclas, há combinações em harmonia perfeita que, mostrando almas, paisagens, rituais é um dizer extremamente belo.

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