domingo, 29 de abril de 2007

O junco


            Primeiro, são descritos os pequenos arroios do Tigre, serpenteando, contornando as ilhas e o Anguilas, se curvando para o norte, logo se ampliando, oculto entre elas, a desembocar num banco de juncos. Depois, os personagens que as asperezas da vida levaram a viver na sua margem e de seus frutos: os peixes e o junco. Um deles, denominado apenas como o velho, após os azares sofridos, chegara num bote que lhe restara e tão pequeno que precisou fazer duas viagens para trazer seus pobres pertences: duas ou três galinhas, o cachorro e a mulher. Mais tarde, chegou o Boga – sem mais nome do que esse, sem idade definida, como que sem história. Juntos, se dedicaram ao junco. O junco, informa o narrador, quanto mais cortado, mais cresce. Quando são muitos os que trabalham cortando e cortam demais, o mercado se satura e ninguém dá nada por um galpão cheio de junco: Não existe nada mais maldito nem mais miserável. E por desgraça, nessas ilhas, parece viver gente que não sabe fazer outra coisa.


            O Boga e o velho pouco falavam entre si, mas se entendiam. A relação patrão/empregado só era manifestada pelo pontapé na porta, de manhã cedo, para indicar o começo do dia e das fainas. Internavam-se, cada um para um lado, na solidão verde que se balançava a cada sopro do vento. Com os pés metidos na água que, por vezes, lhe cobriam os joelhos, descalços e carregando dois sacos amarrados por uma corda, iam fazendo o trabalho difícil, completado, ainda, pela secagem – o junco esparramado no chão – e pela feitura dos feixes para serem, assim, negociados na cidade. Na maior parte do tempo, o vento  zumbia constantemente ao redor de suas cabeças, como um enxame de abelhas, aturdindo-os e rachando-lhes a pele do rosto. Num refúgio, buraco de meio metro cavado no chão e coberto de palha, com um fogão feito num dos cantos, descansavam pelo meio-dia, almoçando nada mais do que um pedaço de toucinho, umas bolachas e tomando uns mates antes de fazer a sesta.

            No cair da noite, voltavam para o rancho, mortos de sono e de cansaço. Boga se atirava num canto do corredor e o velho fumava, esperando a hora de comer a observar o céu e a silenciosa chegada da noite.

            Houve um dia, porém que não chamou por Boga e o mandou trabalhar sozinho. Quieto, no rancho, foi definhando ao longo dos dias, no fim da primavera e se deixou morrer no começo do verão.

            Boga passou a trabalhar sozinho em meio do mar verde, que lhe dava o sustento e lhe deixava as mãos gretadas e o rosto de pele tensa e curtida. A distância esvaziou seus olhos e a solidão o tornou distraído e triste. Longe, nos dias claros, podia ver contornos dos edifícios mais altos de Buenos Aires, sob a constante opressão de uma nuvem cinzenta e, sempre, o ruído dos aviões que nela, mundo distante, iriam aterrizar.

            Sudeste foi publicado em 1969. Um livro de ficção entre muitos outros de Haroldo Conti, autor  premiado nos Estados Unidos e no México. Alguns anos depois foi assassinado pela repressão argentina na assim chamada “guerra suja”. Talvez um castigo por  ter ousado escrever sobre os argentinos que trabalham a meias, comem a meias e, assim, a meias, vão se contentando em viver.

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