domingo, 1 de abril de 2007

Lugares comuns


            Talvez seja enunciar o óbvio. Porém se dispor a fazê-lo sem temer o que disso possa advir parece não ser tão freqüente. Para explicar o poder dos que mandavam na Argentina em 1900, Estela Canto resume algumas vertentes de seu país, após 1853, com a derrota de Manuel Ortiz de Rosas e do Paraguai. Haviam triunfado os que sabiam e, sob um halo de civilização, instalara-se o cenário: a Argentina era o país do futuro [...] refinada, culta e democrática. Comparava-se aos Estados Unidos (que eram democratas, mas nem refinados, nem cultos), ao Brasil (um país de mulatos), ao México (um país de índios) para ter a convicção de que somente ela tinha sangue europeu, sem mácula. E acreditava quando os estrangeiros diziam que era o mais europeu dos países latino-americanos. Seus dirigentes eram ricos: além do gado – era suficiente deixar solto no campo para que se reproduzisse aos milhares – havia o trigo para deixá-los certos de que sem a Argentina o mundo passaria fome. Algumas famílias das classes dirigentes e detentoras do privilégio da riqueza fácil optaram pela ostentação o que, no entender de Estela Canto, é uma peculiaridade dos países que nada tem a mostrar, é o que acontece quando a sensação dominante é a de chapinhar no vazio.

            Autora de vários romances, entre os quais alguns premiados, publicou, em 1989, pela Espasa Calpe de Madrid, Borges a contraluz. Seu intuito, mostrar Jorge Luis Borges como ser humano sem se prender a nada mais que não fossem os momentos compartilhados com ele, o que dele ouviu e as cartas que dele recebeu.

            Poder-se-ia dizer que ela se aventura em alinhavar despretensiosas informações sobre algum estado de espírito na infância ou na adolescência ou na juventude do escritor em Buenos Aires quando retorna da Europa, onde fora viver com seus pais; ou sobre um ou outro fato irrelevante. Porém dados sobre sua vida são assaz raros tanto quanto referências a seu físico ([...] não era exatamente um homem bonito e nem sequer tinha um físico agradável [...] .Borges era gordinho, mais para alto e ereto, com um rosto pálido e cheio, pés notavelmente pequenos e mão que ao ser apertada parecia sem ossos, frouxa como que incomodada de ter que suportar inevitável contato. A voz era trêmula, parecia tatear e pedir licença); tanto quanto à sua maneira de ser (por trás do Jorge que se deixava ver havia um homem que, na sua timidez, lutava por emergir, por ser reconhecido), as suas opiniões literárias, à relação com sua mãe e com as mulheres; sua busca do amor, revelada nos numerosos nomes de mulheres a quem dedicava seus poemas e contos.

            Seu relacionamento com ele se iniciou no mês de agosto de 1944, num jantar na casa de Adolfo Bioy Casares onde foram apresentados e Borges mal a olhou. A esse encontro, por acaso, seguiu-se outro, em dezembro, quando caminharam cinqüenta quadras por Buenos Aires até de madrugada e, na pausa de um bar, ele a define: o sorriso da Gioconda e os movimentos de um cavalinho de xadrez. Borges tinha quarenta e cinco anos e Elena Canto, vinte e oito. Ela diz que Borges a amava (houve um pedido de casamento) e que o seu sentimento por ele era de amizade. Propõe-se a contar a história de um desencontro. Foram unidos, sobretudo, por desentendimentos e mal-entendidos e, a partir deles, ocorreu um distanciamento que se tornou definitivo.

Sem dúvida curiosa, a história que Elena Canto chama de relato de um amor frustrado; meritório, o testemunho sobre a não ignorada interferência tirânica de Leonor Acevedo de Borges sobre seu filho; e, talvez, valiosos, para os admiradores de Borges, os textos que dedica a alguns de seus contos. O que sobressai, no entanto, nas palavras de Elena Canto é a lucidez que mantém diante dos confusos sentimentos e/ou atitudes de Borges e sua aptidão não apenas para captar o âmago da assim tida elite argentina, mas não ter o mínimo pejo em dá-lo a conhecer. E tal elite, pelo que pensa e pela maneira como age – pese a que se tenha em alta conta – não é diferente de nenhuma outra entre as muitas que, assim, proliferam por esse Continente afora.

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