domingo, 30 de julho de 2006

A linguagem da emoção


            Em 1990, a Mercado Aberto de Porto Alegre, lançou Velório sem defunto, título considerado provocador, sob o qual se reúnem setenta e cinco poemas de Mario Quintana. Num deles, “O nome a as coisas”, cujo primeiro verso pergunta Para que estragar a simples existência das coisas com nomes arbitrários?, o poeta confessa sonhar com uma linguagem composta unicamente de adjetivos / Como deve ser a linguagem das plantas e dos animais. Um desejo que leva a pensar em adjetivos que se justapõem, se acumulam, surpreendem pelo inaudito, semeados a mãos cheias pelos trezentos e setenta versos que, agrupados em estrofes de dois a treze e quinze versos, formam os poemas que compõem o livro. No entanto, eles são apenas cento e quarenta e dois e seu emprego, em geral, não foge do coloquial: perna esquerda, seda preta, astros noturnos, boca fechada, paixões pessoais, próceres internacionais, vida inteira, medo terrível, homem sozinho. Muitos, se apresentam pospostos ao substantivo ao qual se referem, porém, poucas vezes, em combinações inusitadas (borboletas estrídulas, céus antidiluvianos) entre as quais, as mais significativas são que aparecem seguidas de um complemento nominal: cheiro evanescente de chocolate, vôo rasante dos pterodáctilos, voz sinuosa de serpente, paz compulsória dos cemitérios, colherinha morta no chão. Igualmente sem muita força expressiva, os adjetivos que funcionam como predicativo do sujeito (Deus é diferente, Só Deus é imparcial) e os que são modificados por um advérbio (homem eternamente escravo, Cosmos infinitamente grande / E o micróbio infinitamente pequeno, O aparte mais espontâneo, eles são muito suscetíveis, ele era tão inconstante) quando sobressaem, pelo número,os que são procedidos de mais, que os intensifica (moças mais lindas, a coisa mais solitária do mundo é um solo de flauta, Não há nada mais chato na vida  / Do que um cachorro sem pulgas...). Como exceção, dois casos: ficaremos [ele e seu Anjo da Guarda] redondamente mortos no chão, árvores de um verde assustadoramente ecológico. Quando o adjetivo aparece posposto ao substantivo impera, exceção feita de bíblica vergonha, sobretudo, o prosaico (belas negrinhas, queridos enganos, vão saber, meigo olhar, saudosos parentes, vasto mundo. Poucas são as vezes em que o poeta emprega dois ou três adjetivos para qualificar o mesmo substantivo e, tampouco neste caso, o seu emprego é sempre digno de nota. Ou se apresentam pospostos e antepostos, ligados por vírgulas: (amor solidário, profundo), ou pela conjunção aditiva “e” (ingênuos e queridos tempos, cidade bombardeada e deserta); ou, com um adjetivo posposto e o outro anteposto ao substantivo: terrível mundo atual, as nossas intrometidas tias são eternas, última janela acesa). Em outros casos, em combinações inesperadas como O sol derrama, na calçada, / A sua bela, matinal urinada! do poema “Amanhecer” ou como “Na solidão da noite / uma vaca, uma abençoada / vaca / muge: / o seu mugido é um rio de veludo morno, / voz de mãe e de amante: / quente e cariciosa.../-a mesma voz que tu, antes de me abandonares ,/ Tinhas sempre comigo!” do poema “Bucólica”.

            Muito raro é Mario Quintana usar três adjetivos para qualificar o mesmo substantivo. Tal acontece quando se refere ao poema que -por mais leve, mais breve, por mínimo que seja preenche todo o espaço do qual a medida é o homem; ou quando define a sua alma: alma de violoncelo / -grave, profunda, triste.... E, curioso, ser o adjetivo próprio, própria o único a aparecer várias vezes nos seus versos: próprios Anjos, fantasma próprio, própria voz, própria vida (duas vezes). Como, também curioso, terem sido uns dez poemas do livro, construídos sem um único adjetivo. O que não os priva do que guiou, sempre, os seus versos: a espontaneidade e a emoção. Como se fossem pautados na linguagem que ele imaginou ser a das plantas e a dos animais.

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