domingo, 9 de julho de 2006

O indizível



            Plenos poderes foi publicado em 1962 e os trinta e seis poemas que o compõem se constituem, no dizer de Emir Rodríguez Monegal, como as outras obras que vieram à luz entre 1958 e 1964, a fecunda expressão outonal de Pablo Neruda. São pequenos poemas a cantar o mar, a água, o cardo, a primavera; outros, mais extensos, como o que historia a construção de sua casa “La Sebastiana” desde a hora em que a planeja (Primeiro a fiz no ar) até deixá-la pronta para florescer (trabalho para a primavera); houve o trivial – cimento, ferro, vidro, pregos, aldrava, fechaduras – e a emoção de salvar as portas sem muro, quebradas, / amontoadas em demolições,/ já memória,/ sem lembrança de chave. Também, os que lembram de amigos muito especiais: o músico Acario Cotapos, que, para ele, transformou o idioma num desmoronar de cristais; o velho arrumador de relógios, o antigo herói dos minutos, Asterio Alarcón. Ainda, os que parecem nada dizer num jogo feito de sons e de imagens. Como caminho a conduzi-los, um indagar de si mesmo que ora se mostra assaz tristonho, assaz alegre; por vezes, faiscante na troça que nunca é inocente. No poema “Al difunto pobre”, o tom jocoso se instala nos versos iniciais. Ao usar o possessivo de primeira pessoa do plural, acompanhando o termo pobre que será repetido, justaposto e sem pontuação, ainda duas vezes; ao usar o verbo no futuro para uma ação a ser realizada em tempo muito próximo: A nosso pobre enterraremos hoje / a nosso pobre pobre. Na segunda estrofe, ainda se servindo de um pleonasmo, entrelaça o verbo habita com o substantivo habitante na intenção de apontar para a incongruência de que esse pobre, somente passa a significar algo depois de morto. Porque vivo, nada possuiu. Nem casa, nem comida, nem alfabeto, nem lençóis. Só o trabalho duro de cavar a terra inculta, picar pedras, cortar trigo, molhar a argila, transportar a lenha. Ao morrer, Por sorte, e é estranho, se puseram de acordo /todos desde o bispo até o juiz / para lhe dizer que terá céu. Com o lírico, o cômico, o irônico, o burlesco vai se fazendo a história de vida de quem nunca esperou tanta justiça.

Sobretudo, a persistir, o eu que está presente no confessar o seu dever de poeta (oferecer o som do mar a quem não o escuta), a sua submissão diante da vida (não tenho mais remédio que viver), no dizer da amizade, das indagações que o habitam. De suas muitas certezas. Não raro, assume a voz dos homens. No poema “Los nacimientos”, o primeiro verso afirma, prosaico e inquestionável: Nunca recordaremos ter nascido. Os seguintes referem o viver – um cotidiano que pacientemente anota o transcorrer do tempo e o carinho ofertado – e, outra vez, constatam que o minuto de morrer é deixado sem menção. Como também, o momento de nascer. Agora, o Poeta se dirige a si mesmo ou a um interlocutor para dizer o que é sabido: que do momento de nascer, nada é lembrado, nem um ramo/ da primeira luz. Restando, somente, essa verdade, Sabe-se que nascemos, verso que se constitui uma estrofe para, que, na estrofe que se lhe segue, referir o momento, seja ele numa sala, num bosque, numa choça de pescador, nos canaviais em que uma mulher se dispõe a parir. Outra vez, a mesma estrofe de um verso, porém com verbo no passado, a introduzir aquela em que o Poeta registra a passagem do não ser para o existir: ter mãos e olhos num viver que é feito de alimentos e de lágrimas e do amar e amar e sofrer e sofrer. Como registra a figura da mãe, aquela mulher desabitada no cenário em desordem. Conclui, novamente a se dirigir a si mesmo ou a um interlocutor, que nada do mar bravio que levantou uma onda ficou na memória. A última estrofe do poema também de um só verso, determina: não tens mais lembranças do que a tua vida. Síntese de uma vivência de maturidade em que as lembranças afloram e são ordenadas para os textos em prosa, “Vidas del poeta” que escreve para O CRUZEIRO Internacional e para os poemas de Memorial de Isla Negra. Inventários de alegrias e angústias que o Poeta relata sem pejo porque sabe que falar de si é a melhor maneira de falar de todos.

 

 

 

 

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