domingo, 16 de julho de 2006

Cena de rua


Alguns deles tem como cenário o que vai sendo visto numa viagem de carro (ruas de uma pequena cidade, sítios com plantas e árvores, o areal branco, paisagem rubra, de pedras e raros arbustos, paisagem seca, de muitos gravetos, uma venda ou um bar pobre de beira de estrada. Porém a capa – vista de um pedaço de cidade com seus edifícios e algo de um parque ou jardim se fundindo na bruma – sugere serem os contos de O perfume de Roberta (Rio de Janeiro, Garamond, 2005) de temática urbana. Assim, “Passarinho”, o drama do nordestino que chega a São Paulo para trabalhar; “Oferta” e “O perfume de Roberta”, aquele das meninas que se prostituem por um quase nada. Assim, a revolta do mendigo, vítima da violência pelo furto praticado ou a procura vã pelos seus direitos de quem foi preterido, injustamente, num concurso. Dilemas do indivíduo (amor não correspondido, solidão) ou daqueles impostos pela realidade do país (com suas desigualdades sociais e os cancros que delas advém). Relatos em que a menção ao movimento do sol, do vento, do mar e aos gestos dos personagens se insere em meio à ação e lhes determina o ritmo; em que vozes narrativas, atendo-se ao que estão vendo, sabem, apenas em parte, o que efetivamente acontece. Em “Ilhado”, o forasteiro na cidade, observa, de longe, o encontro do casal e fica sem saber quem são, como vivem. No conto “O cavalo”, o morador de um prédio acompanha, da varanda de seu apartamento, a briga do casal numa casa vizinha. Ou vozes de quem, embora participando da ação, não tem condições de saber de tudo que se passa, instaurando-se, então, no relato, zonas de dúvidas. No conto “A morta”, há quem afirme a presença de Suzana no quarto e há quem a negue. Há quem escute vozes na beira do rio e, diante dessa afirmativa, quem afirme estar apenas falando sozinho. 

 Entre os dezoito contos que formam o livro, muito breve e muito intenso o que tem por título “O último segredo”. É construído num único parágrafo de frases curtas que se enlaçam pelas vírgulas para contar o encontro da mãe com o filho morto em praça pública. Mãe e filho em meio à presença dos curiosos, aos olhares dos que passam, ao som que anuncia uma promoção de tesouras, ao luminoso do colégio que pisca. No desespero, diante do irreversível, ela chora e grita, canta uma cantiga, encosta o rosto no rosto do filho, procura sentir-lhe as mãos, os olhos. Como parte do cenário,o menino que ri, a mulher que se olha no espelho, o velho que opina sobre o morto, a foto que é feita, o carro de polícia que chega, o sargento que procura escutar o que diz a mãe para o filho. No chão, tocos de cigarro, formigas que já se apossam dos pés do morto e palavras que não são ouvidas. As primeiras seqüências do relato dizem da mulher que se precipita – passa pelas pessoas, pede passagem, corre, cruza o sinal, atravessa a praça – para chegar junto ao corpo caído do rapaz. Ela está com o vestido frouxo, uma só sandália. Ele, sujo e sem camisa, o corpo cortado de rajadas, tem barro grudado nas pernas, os cabelos duros e a mãe o chama de Joca. E, nada mais é dado a ver, negando-se ao narrador – e ao leitor – o nome da mãe, a maneira como ela vive, como soube da morte do filho, quem o matou e por qual razão, as palavras ditas no seu ouvido nesse leito de morte que é o calçadão.
            Rinaldo de Fernandes, doutor em Letras e professor de Literatura na Universidade Federal da Paraíba, estreou na ficção, em 1997, com O Caçador. Depois, fez os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século (2001),

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