O
título anuncia paixões e, maiores ou menores, elas se enleiam em conflitos,
traçados por verdadeiras ou pretensas escolhas ou por armadilhas inelutáveis da
vida. Tais conflitos pontilham os contos reunidos em Inventário de pequenas
paixões: o abandono de um meio de sobrevivência, a constatação de que o
dinheiro guardado por muito tempo não tinha mais valor, a surpresa do marido
diante de escolhas femininas, o melancólico fim de um amor de adolescentes, o
lamentável resultado do jogo de futebol, o suspense que antecede o nascimento
do jumentinho; a sensata escolha do novo marido, a atração feminina pelo mundo
a ser descoberto, o desencanto a levar ao suicídio; a estatueta que vira
talismã. Publicado pela Manufatura, de João Pessoa, este segundo livro de
Geraldo Maciel confirma a imensa qualidade literária já presente em Aquelas
criaturas tão estranhas, publicado cinco anos antes: o autor paraibano
revela possuir não apenas uma imaginação alterosa que, aliada à capacidade de
expressar o real, no que ele tem de incongruente, como um certeiro domínio da
estrutura do relato. Excepcionais, as narrativas dos encontros entre Aprígio
Justo e Antunino, entre Andrezildo e Luízio, enlaçados por raivas perenes ou
por uma antiga amizade.
Em
“A doce rapadura da vingança”, como se fosse adequadamente fantasioso, o ódio
que se instaura e se alimenta e permanece à espera da hora assinalada para se
saciar no sangue do outro. Hora que, nenhum dos dois, e tampouco os que estão à
volta, sabem qual será. O relato se inicia com o encontro que não era para acontecer. No fim de tarde, na
pequena praça, o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios Aprígio
Justo e Antunino, sem o pretenderem e, tampouco, sem o esperarem, se vêem face
a face. Os moleques da rua fogem, as portas e as janelas se fecham e muitos,
ainda que tentando se esconder, se aproximam para assistir ao embate. A
narrativa torna ao passado e expõe as humilhações que os contendores impuseram
um ao outro, seus medos e sobressaltos, a teimosia em odiar, a expectativa do
encontro fatal. Torna ao momento da ação quando eles estão frente a frente,
cada um com a arma apontando para o inimigo. Os minutos passam e, diante de uma platéia sem respiração, os braços caem,
eles se dão as costas e vão embora. A refazer estratégias, a organizar o tempo
que ainda teriam para se “dedicar a lamber a rapadura da vingança”.
Estrutura
semelhante tem o conto “A visita”. Andrezildo Varela, sem saber muito bem o
porquê, viaja trezentos quilômetros para fazer uma visita. Após a seqüência
inicial que se refere aos desígnios do destino, ou divinos ou, simplesmente, da
vida, é assim que se inicia o conto: Andrezildo a presumir as razões de sua
viagem, uma delas, talvez, o sonho que o vinha atormentando há dezoito anos. E
que passa a ser realidade quando ele chega ao presídio e as portas e grades vão
se abrindo para lhe dar passagem. O narrador volta no tempo, a esses dezoito
anos atrás, para dar ciência do que acontecera: uma jogatina, três parceiros,
um assassinato, o que se confessa autor do crime e se deixa prender e o
delegado que percebe a mentira embora aceite o dito para não ter que enfrentar aquele
que, dos dois, era filho de alguém.
Um ou outro desacerto no julgamento e o que o réu não esperava, a condenação a
ser cumprida no presídio da capital a ajuda
dada a sua mãe e esse algum
dinheiro, roupas e consolos que lhe foram enviados pelo amigo. Assim
dizendo, o narrador volta ao presente, ao encontro, no pátio da cadeia, dos
dois velhos amigos. O que chegara, não fossem as marcas do passar do tempo,
continuando a ser o mesmo: a acenar com o alvará de soltura, com uma vida folgada, com um emprego de pouco
trabalho e boa paga, com laços de
amizade reatados. O outro, Luízio, na recusa da liberdade, achando motivos para
ficar preso. Na verdade, sabendo que encontrara o melhor deles: seus olhos gelados, seu
hálito de cachaça e ódio o diziam. Resposta, sem palavras, que o visitante
entendeu porque o tremor que lhe viu nas faces era o mesmo que ele próprio
havia sentido dezoito anos antes, quando matara esse tal Ramo, xerém qualquer.
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