domingo, 6 de agosto de 2006

Aventura sem regresso


            O título anuncia paixões e, maiores ou menores, elas se enleiam em conflitos, traçados por verdadeiras ou pretensas escolhas ou por armadilhas inelutáveis da vida. Tais conflitos pontilham os contos reunidos em Inventário de pequenas paixões: o abandono de um meio de sobrevivência, a constatação de que o dinheiro guardado por muito tempo não tinha mais valor, a surpresa do marido diante de escolhas femininas, o melancólico fim de um amor de adolescentes, o lamentável resultado do jogo de futebol, o suspense que antecede o nascimento do jumentinho; a sensata escolha do novo marido, a atração feminina pelo mundo a ser descoberto, o desencanto a levar ao suicídio; a estatueta que vira talismã. Publicado pela Manufatura, de João Pessoa, este segundo livro de Geraldo Maciel confirma a imensa qualidade literária já presente em Aquelas criaturas tão estranhas, publicado cinco anos antes: o autor paraibano revela possuir não apenas uma imaginação alterosa que, aliada à capacidade de expressar o real, no que ele tem de incongruente, como um certeiro domínio da estrutura do relato. Excepcionais, as narrativas dos encontros entre Aprígio Justo e Antunino, entre Andrezildo e Luízio, enlaçados por raivas perenes ou por uma antiga amizade.

            Em “A doce rapadura da vingança”, como se fosse adequadamente fantasioso, o ódio que se instaura e se alimenta e permanece à espera da hora assinalada para se saciar no sangue do outro. Hora que, nenhum dos dois, e tampouco os que estão à volta, sabem qual será. O relato se inicia com o encontro que não era para acontecer. No fim de tarde, na pequena praça, o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios Aprígio Justo e Antunino, sem o pretenderem e, tampouco, sem o esperarem, se vêem face a face. Os moleques da rua fogem, as portas e as janelas se fecham e muitos, ainda que tentando se esconder, se aproximam para assistir ao embate. A narrativa torna ao passado e expõe as humilhações que os contendores impuseram um ao outro, seus medos e sobressaltos, a teimosia em odiar, a expectativa do encontro fatal. Torna ao momento da ação quando eles estão frente a frente, cada um com a arma apontando para o inimigo. Os minutos passam e, diante de uma platéia sem respiração, os braços caem, eles se dão as costas e vão embora. A refazer estratégias, a organizar o tempo que ainda teriam para se “dedicar a lamber a rapadura da vingança”.

            Estrutura semelhante tem o conto “A visita”. Andrezildo Varela, sem saber muito bem o porquê, viaja trezentos quilômetros para fazer uma visita. Após a seqüência inicial que se refere aos desígnios do destino, ou divinos ou, simplesmente, da vida, é assim que se inicia o conto: Andrezildo a presumir as razões de sua viagem, uma delas, talvez, o sonho que o vinha atormentando há dezoito anos. E que passa a ser realidade quando ele chega ao presídio e as portas e grades vão se abrindo para lhe dar passagem. O narrador volta no tempo, a esses dezoito anos atrás, para dar ciência do que acontecera: uma jogatina, três parceiros, um assassinato, o que se confessa autor do crime e se deixa prender e o delegado que percebe a mentira embora aceite o dito para não ter que enfrentar aquele que, dos dois, era filho de alguém. Um ou outro desacerto no julgamento e o que o réu não esperava, a condenação a ser cumprida no presídio da capital a ajuda  dada a sua mãe e esse algum dinheiro, roupas e consolos que lhe foram enviados pelo amigo. Assim dizendo, o narrador volta ao presente, ao encontro, no pátio da cadeia, dos dois velhos amigos. O que chegara, não fossem as marcas do passar do tempo, continuando a ser o mesmo: a acenar com o alvará de soltura, com uma vida folgada, com um emprego de pouco trabalho e boa paga, com laços de amizade reatados. O outro, Luízio, na recusa da liberdade, achando motivos para ficar preso. Na verdade, sabendo que encontrara o melhor deles: seus olhos gelados,  seu hálito de cachaça e ódio o diziam. Resposta, sem palavras, que o visitante entendeu porque o tremor que lhe viu nas faces era o mesmo que ele próprio havia sentido dezoito anos antes, quando matara esse tal Ramo, xerém qualquer.

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