A
viagem começara com ele e seus improvisados amigos indo para o litoral, num pequeno caminhão Ford, muito antigo, o Borboleta, assim chamado porque luzia
na trama em favos do radiador, uma
borboleta de louça, com as asas azuis muito abertas. Depois, mudanças de
planos e circunstâncias inesperadas, prolongam o que seria um breve passeio e
fazem dele uma sucessão de aventuras. A pé, de ônibus, de navio, de caminhão,
de carro, de trem, de avião e outra vez a pé ele faz um longo percorrido em que
as paisagens e os espaços urbanos se intercalam, em que um ou outro interior se
deixa ver, como sem se dar conta do que existe a seu redor. Cenários apenas
delineados, seja nas suas linhas e formas, seja nas suas tonalidades, onde se
inscreve o seu drama de solidão. Levado pelos outros, ele se deixa ir. E é o
narrador de sua história que anota, em rápidas menções, alguma imagem: matarias densas, vale profundo com torrentes, o
morro de faces abruptas cortadas em
plena pedra, a beleza do vale – essa
caixa enorme, sinuosa, cavada com desperdício,
para conter apenas um rio – que fugia.... Por vezes, assinalando o que a
natureza tem de cambiante quando invadida por claridades da manhã ou penumbras
do entardecer. Quando movida pelo vento: Os
coxilhões desapareciam nos panos de neblina fria que o vento rasgava ou tocava
para longe, numa fúria. Rara vez, alguma imagem da qual se lembre: estrada-rua, primeiro com muita poeira,
bananeiras e ananases margeando-a por entre as casas, os pomares e os jardins
das pequenas cidades suburbanas....
Das
cidades que foram se sucedendo, algo apenas entrevisto, a avenida iluminada prolongando
a estrada, a igreja alta, bonita,
toda de pedra, a praça que parecia um descampado, a ponte metálica de
Montenegro, a ponte de cimento do rio Pelotas com suas amuradas, com seus balaústres
simples e retos, a de Florianópolis, elegante
e fina como um pernilongo. E, algo apenas vivenciado, as ruas estreitas e entupidas da parte
comercial do Rio, a praça, a igreja, a casa de governo, a rua principal de
Florianópolis e os bondes de São Paulo que apareciam
não se sabia de onde e também
perdiam-se em qualquer parte fabulosa da cidade.
Frágeis
contornos que uma ou outra tonalidade ilumina. A cor branca a qualificar as
nuvens, as águas da cachoeira, a beira do mar, a completar o sentido do
adjetivo na expressão o pasto se achava
polvilhado de branco. O Azul, para dizer do mar (uma língua azul marinha jogada no chão contra uma barra branca), da
poeira (azul violácea do mar), da
manhã (tinha uma transparência azul violácea), da sombra do Borboleta (oblíqua, fazia uma faixa diagonal dum azul
violáceo), do céu (um azul desmaiado
pelo calor). O verde a dar cor às paredes da casa onde os móveis, as
molduras, o quebra-luz eram num tom entre o vinho e o marrom. Como um sinal de
alegria, o novelo de lã amarela. O vermelho, a destacar algumas folhas dos pés
de ananás perto da estrada.
No
último capítulo do romance, “Já não chovia”, clara alusão de bonança, ele
chega, enfim, da volta a sua terra e, num cenário em que irrompe a luz depois
da chuva, entende que terminara a razão de seus medos. A sua volta, as cores,
agora, se mostram num desabrochar: o pasto como que brota verde, do chão, a faixa do céu, antes chuvoso, se descobre dum azul puro de louça ou de cetim, as flores rasteiras e pequenas, se espalham, em manchas brancas, amarelas,
roxas. Liberto, já inserido nesse mundo que não mais lhe é hostil, diante daquela tarde de ouro, ele sorri. De
estranho no mundo, passa, então, a dele fazer parte: um dos mais instigantes e
comoventes personagens da Literatura Brasileira a conduzir o relato de O
Louco do Cati. Publicado, em Porto Alegre, no ano de 1942, este segundo
romance de Dyonélio Machado, apareceu num momento que não era propício para os
que se permitiam ter idéias diferentes daquelas preconizadas pela Ditadura
então vigente no país. Assim, embora tivesse vindo à luz sob a chancela,
prestigiosa, da Editora Globo, as opiniões favoráveis sobre ele não foram
muitas. E, inexplicavelmente, ao longo dos anos, continuou sendo privado da
crítica atenta que lhe é devida. As qualidades estão presentes em cada uma das
páginas de O Louco do Cati e, mormente, na composição de seu personagem,
no caminho escuro que percorre em direção da luz.
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