domingo, 20 de agosto de 2006

Mundo reconsquistado


 
            A viagem começara com ele e seus improvisados amigos indo para o litoral, num pequeno caminhão Ford, muito antigo, o Borboleta, assim chamado porque luzia na trama em favos do radiador, uma borboleta de louça, com as asas azuis muito abertas. Depois, mudanças de planos e circunstâncias inesperadas, prolongam o que seria um breve passeio e fazem dele uma sucessão de aventuras. A pé, de ônibus, de navio, de caminhão, de carro, de trem, de avião e outra vez a pé ele faz um longo percorrido em que as paisagens e os espaços urbanos se intercalam, em que um ou outro interior se deixa ver, como sem se dar conta do que existe a seu redor. Cenários apenas delineados, seja nas suas linhas e formas, seja nas suas tonalidades, onde se inscreve o seu drama de solidão. Levado pelos outros, ele se deixa ir. E é o narrador de sua história que anota, em rápidas menções, alguma imagem: matarias densas, vale profundo com torrentes, o morro de faces abruptas cortadas em plena pedra, a beleza do vale – essa caixa enorme, sinuosa, cavada com desperdício, para conter apenas um rio – que fugia.... Por vezes, assinalando o que a natureza tem de cambiante quando invadida por claridades da manhã ou penumbras do entardecer. Quando movida pelo vento: Os coxilhões desapareciam nos panos de neblina fria que o vento rasgava ou tocava para longe, numa fúria. Rara vez, alguma imagem da qual se lembre: estrada-rua, primeiro com muita poeira, bananeiras e ananases margeando-a por entre as casas, os pomares e os jardins das pequenas cidades suburbanas....

            Das cidades que foram se sucedendo, algo apenas entrevisto, a avenida iluminada prolongando a estrada, a igreja alta, bonita, toda de pedra, a praça que parecia um descampado, a ponte metálica de Montenegro, a ponte de cimento do rio Pelotas com suas amuradas, com seus balaústres simples e retos, a de Florianópolis, elegante e fina como um pernilongo. E, algo apenas vivenciado, as ruas estreitas e entupidas da parte comercial do Rio, a praça, a igreja, a casa de governo, a rua principal de Florianópolis e os bondes de São Paulo que apareciam não se sabia de onde e também perdiam-se em qualquer parte fabulosa da cidade.

            Frágeis contornos que uma ou outra tonalidade ilumina. A cor branca a qualificar as nuvens, as águas da cachoeira, a beira do mar, a completar o sentido do adjetivo na expressão o pasto se achava polvilhado de branco. O Azul, para dizer do mar (uma língua azul marinha jogada no chão contra uma barra branca), da poeira (azul violácea do mar), da manhã (tinha uma transparência azul violácea), da sombra do Borboleta (oblíqua, fazia uma faixa diagonal dum azul violáceo), do céu (um azul desmaiado pelo calor). O verde a dar cor às paredes da casa onde os móveis, as molduras, o quebra-luz eram num tom entre o vinho e o marrom. Como um sinal de alegria, o novelo de lã amarela. O vermelho, a destacar algumas folhas dos pés de ananás perto da estrada.

            No último capítulo do romance, “Já não chovia”, clara alusão de bonança, ele chega, enfim, da volta a sua terra e, num cenário em que irrompe a luz depois da chuva, entende que terminara a razão de seus medos. A sua volta, as cores, agora, se mostram num desabrochar: o pasto como que brota verde, do chão, a faixa do céu, antes chuvoso, se descobre dum azul puro de louça ou de cetim, as flores rasteiras e pequenas, se espalham, em manchas brancas, amarelas, roxas. Liberto, já inserido nesse mundo que não mais lhe é hostil, diante daquela tarde de ouro, ele sorri. De estranho no mundo, passa, então, a dele fazer parte: um dos mais instigantes e comoventes personagens da Literatura Brasileira a conduzir o relato de O Louco do Cati. Publicado, em Porto Alegre, no ano de 1942, este segundo romance de Dyonélio Machado, apareceu num momento que não era propício para os que se permitiam ter idéias diferentes daquelas preconizadas pela Ditadura então vigente no país. Assim, embora tivesse vindo à luz sob a chancela, prestigiosa, da Editora Globo, as opiniões favoráveis sobre ele não foram muitas. E, inexplicavelmente, ao longo dos anos, continuou sendo privado da crítica atenta que lhe é devida. As qualidades estão presentes em cada uma das páginas de O Louco do Cati e, mormente, na composição de seu personagem, no caminho escuro que percorre em direção da luz.

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