domingo, 13 de agosto de 2006

O cara de sapo


             Em 1944, um momento da história brasileira marcado pelas perseguições aos que se opunham ao autoritarismo instaurado pela ditadura de Getúlio Vargas – como qualquer outra, uma ditadura que mantinha seus esbirros obedientes às práticas exigidas para mantê-la – é publicado Desolação (reeditado, em 2005, pela Planeta). Nesse romance, Dyonélio Machado continua a história que iniciara em O Louco do Cati: em dezembro de 1935, um grupo de amigos faz um rápido passeio ao litoral. Na volta, Norberto, mais o improvisado companheiro que levara junto, decide ficar. Maneco Manivela, Léo e Luiz iniciam o retorno a Porto Alegre. No entanto, problemas com o pequeno caminhão em que viajavam os detém em Capela do Viamão e em Águas Claras. Maneco Manivela, falando com outros hóspedes do hotel onde se alojavam, se interessa por assuntos considerados subversivos e se dá conta de que, há tempos atrás, já havia participado de uma reunião clandestina, já havia conversado com pessoas, politicamente comprometidas. O aviso do Dr. Matos, um hóspede do Hotel, informando que seu velho conhecido, Bagé, era um provocador e a presença de elementos, tidos por policiais, o fazem acreditar que, além de provocado, também está sendo vigiado. Pelo Pimenta, um personagem criado por mão de mestre.    

Pimenta, parecendo meio arredio, chegara em Águas Claras a dizer que estava de passagem para Cidreira onde pretendia achar um emprego. É levado até o grupo de amigos por Bagé que o apresenta como ex-embarcadiço, um companheiro, alguém com tradição de luta. Tipo de nortista, moreno pálido, tem o ar dum indivíduo experimentado e conta as circunstâncias em que se deu a morte de Altamira, o apóstolo dum credo condenado, que presenciara. Relato que, sobretudo por um detalhe – ao ser preso com Altamira havia acendido um cigarro – deixa Maneco Manivela intrigado. Mais tarde, entre seus amigos, manifesta essa estranheza e em meio ao diálogo, um deles pergunta qual era o nome do marítimo e outro responde: Pimenta.

Maneco Manivela, ao olhar para ele, achara que tinha uma cara de bandido como aquele que lhe mostraram quando era criança: um homem rico, mandante de um crime hediondo. Desconfia tratar-se de um policial. O que, de fato, é confirmado pelo Dr. Matos: É um velho policial... disse ao pousar o olhar na sua cara achatada, fria, imóvel. Uma cara de sapo, em que só os olhos viviam. E, nas páginas que seguem, ainda que a ele se refiram como marinheiro, policial, espião, embarcadiço, odioso Pimenta, vagabundo, será, principalmente designado por cara de sapo: o homem de cara de sapo que monta guarda numa cadeira, ao pé da porta da rua; o homem cuja cara de sapo já uma ou duas vezes avançou na sombra, junto à porta, para espiar ali para dentro.... Maneco lhe imagina “a cara fria de sapo, limpando o suor, descansando depois duma jornada daquelas. Descansando um momento, para seguir adiante, na perseguição duma outra caça..; quando pensa no Dr. Matos o vê , perseguido pelo Pimenta, numa corrida, em que ele ia na frente e Pimenta, a cara de sapo, atrás, atrás, infatigavelmente.... E Maneco tem medo “de meter a cabeça pela fresta e dar de cara com a cara chata, repelente, fria do sapo; inquieta-se com a possibilidade de reencontrá-lo, sapo frio de olhos devastadores ou de se defrontar com os olhos gulosos do sapo. Sente-se ameaçado pelo sapo frio e repelente à sua frente, pronto a abocanhá-lo e considera: Estranho, como se mete na cabeça de um bandido desses uma idéia assim: de fazer mal a uma pessoa. Não há fadigas, não há perigos que não enfrentem e vençam.

Outras expressões lhe completam o retrato (cara imóvel, chata, impenetrável), sua maneira de ser (olhar frio, olhar de anfíbio, olhar que diligencia ser atencioso, impassível, pálido, sereno, frio, obsequioso, alerta... Sobretudo alerta.) ou mencionam suas atividades de farejador que levanta a caça para que outros se encarreguem de prender. Mas é, sobretudo, na frase do Dr. Matos a Maneco Manivela quando ele, já irritado de se ver seguido, quer lhe amassar a cara, que se estabelece a verdadeira abrangência do policial a serviço da repressão: De nada adianta. Para substituir a cara amassada, surge logo outra, mais odiosa ainda.

Dyonélio Machado sabia muito bem do que estava a falar.

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