Em 1944, um momento da história brasileira
marcado pelas perseguições aos que se opunham ao autoritarismo instaurado pela
ditadura de Getúlio Vargas – como qualquer outra, uma ditadura que mantinha
seus esbirros obedientes às práticas exigidas para mantê-la – é publicado Desolação
(reeditado, em 2005, pela Planeta). Nesse romance, Dyonélio Machado continua a
história que iniciara em O Louco do Cati: em dezembro de 1935, um
grupo de amigos faz um rápido passeio ao litoral. Na volta, Norberto, mais o
improvisado companheiro que levara junto, decide ficar. Maneco Manivela, Léo e
Luiz iniciam o retorno a Porto Alegre. No entanto, problemas com o pequeno
caminhão em que viajavam os detém em Capela do Viamão e em Águas Claras. Maneco
Manivela, falando com outros hóspedes do hotel onde se alojavam, se interessa
por assuntos considerados subversivos e se dá conta de que, há tempos atrás, já
havia participado de uma reunião clandestina, já havia conversado com pessoas,
politicamente comprometidas. O aviso do Dr. Matos, um hóspede do Hotel, informando
que seu velho conhecido, Bagé, era um provocador e a presença de elementos,
tidos por policiais, o fazem acreditar que, além de provocado, também está
sendo vigiado. Pelo Pimenta, um personagem criado por mão de mestre.
Pimenta,
parecendo meio arredio, chegara em
Águas Claras a dizer que estava de passagem para Cidreira onde pretendia achar
um emprego. É levado até o grupo de amigos por Bagé que o apresenta como ex-embarcadiço,
um companheiro, alguém já com
tradição de luta. Tipo de nortista, moreno pálido, tem o ar dum indivíduo experimentado
e conta as circunstâncias em que se deu a morte de Altamira, o apóstolo dum credo condenado, que presenciara. Relato que, sobretudo por um
detalhe – ao ser preso com Altamira havia acendido um cigarro – deixa Maneco
Manivela intrigado. Mais tarde, entre seus amigos, manifesta essa estranheza e
em meio ao diálogo, um deles pergunta qual era o nome do marítimo e outro
responde: Pimenta.
Maneco
Manivela, ao olhar para ele, achara que tinha uma cara de bandido como aquele
que lhe mostraram quando era criança: um homem rico, mandante de um crime
hediondo. Desconfia tratar-se de um policial. O que, de fato, é confirmado pelo
Dr. Matos: É um velho policial... disse
ao pousar o olhar na sua cara achatada, fria, imóvel. Uma cara de sapo, em que
só os olhos viviam. E, nas páginas que seguem, ainda que a ele se refiram
como marinheiro, policial, espião, embarcadiço, odioso Pimenta, vagabundo,
será, principalmente designado por cara
de sapo: o homem de cara de sapo que monta guarda numa cadeira, ao pé da
porta da rua; o homem cuja cara de sapo já
uma ou duas vezes avançou na sombra, junto à porta, para espiar ali para
dentro.... Maneco lhe imagina “a cara
fria de sapo, limpando o suor, descansando depois
duma jornada daquelas. Descansando um
momento, para seguir adiante, na perseguição duma outra caça..; quando
pensa no Dr. Matos o vê , perseguido pelo Pimenta, numa corrida, em que ele ia
na frente e Pimenta, a cara de sapo,
atrás, atrás, infatigavelmente....
E Maneco tem medo “de meter a cabeça pela
fresta e dar de cara com a cara
chata, repelente, fria do sapo; inquieta-se com a possibilidade de
reencontrá-lo, sapo frio de olhos
devastadores ou de se defrontar com os
olhos gulosos do sapo. Sente-se
ameaçado pelo sapo frio e repelente à sua
frente, pronto a abocanhá-lo e considera: Estranho, como se mete na cabeça de um bandido desses uma idéia assim: de fazer mal a uma pessoa. Não há
fadigas, não há perigos que não enfrentem e vençam.
Outras expressões
lhe completam o retrato (cara imóvel,
chata, impenetrável), sua maneira
de ser (olhar frio, olhar de anfíbio, olhar que diligencia ser atencioso,
impassível, pálido, sereno, frio, obsequioso, alerta...
Sobretudo alerta.) ou mencionam suas atividades de farejador que levanta a
caça para que outros se encarreguem de prender. Mas é, sobretudo, na frase do
Dr. Matos a Maneco Manivela quando ele, já irritado de se ver seguido, quer lhe
amassar a cara, que se estabelece a verdadeira abrangência do policial a
serviço da repressão: De nada adianta.
Para substituir a cara amassada, surge logo outra, mais odiosa ainda.
Dyonélio
Machado sabia muito bem do que estava a falar.
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