Num cartão postal
de Londres escreveu para o amigo: ou a
obediência estúpida ou a revolta. Optou, desde cedo, pela revolta. Seu
nome, Raimundo, filho único de um homem rico de Manaus que, no culto do trabalho
e da produtividade, abomina o seu gosto pelo desenho e, procurando desviá-lo da
vocação, o maltrata.
Mais uma vez, neste Cinzas do
Norte (Companhia das Letras, 2005), seu terceiro romance, Milton Hatoum
constrói uma trama de desencontros familiares. Trajano Matoso, magrinho, tímido, elegante, assim o descreve a mulher por quem se apaixona; louco, duas vezes doente, pensa o filho
que num momento de cólera o acusa de ser um
impotente de corpo e alma.... Segredo pressentido ou afirmação raivosa que,
se verdadeira, vai estar na origem do ódio que lhe devota o pai. Diz Macau, o
motorista da família, que tinha pena do menino, pois o patrão não parava de
implicar com ele: Um pai torto: nunca pôs
a criança nos braços. Tinha uma birra esquisita com o Raimundinho. Birra
que o leva a aprisioná-lo no porão, quando pequeno, para que não brinque com as
crianças da rua; a agredi-lo, quando o encontra com elas ou, mais tarde, a
bater-lhe com o cinturão porque lhe ofendera os
amigos.
O filho, por sua vez, se sabe
vigiado, perseguido, cerceado e se debate, buscando um outro espaço que não o
palacete neoclássico onde vive. Não ignora o desprezo de que é vítima,
manifestado em palavras que não somente o atingem quanto ao desleixo de vestir
ou o asseio das mãos, sempre manchadas de tinta, mas em insinuações perversas
além da invariável convicção do pai que ele não promete nada, não é nada, um delinquente a pensar que a revolta é uma façanha. Que seus desenhos
nada mais são do que rabiscos obscenos,
e o seu permanente empenho em desenhar é um
vício, uma doença que, então, é preciso erradicar. E Raimundo não aceita
orientações. Nem do pai, submisso a seu espírito prático, a negar um futuro
construído com devaneios, esperando que o filho se transforme no que deseja: um
ser forte a colecionar bravuras no Colégio Militar. Tampouco dos que lhe acenam com os caminhos que despreza,
o da política e o do empresariado.
Na recusa de ser manietado,
desobedece, engana, enfrenta, querendo ver o mundo por seus próprios olhos.
Assim, entende que o trabalho, apregoado pelo pai, nada mais é do que a
exploração do mais fraco; assim, como aluno do Colégio Militar, percebe que os
filhos dos militares não graduados, moleques
que fazem o trabalho pesado, jamais poderão ser mais do que sargento;
assim, sofre, indignado, pela floresta devastada, pela insanidade do conjunto
habitacional construído pelo prefeito: cubículos sem água nem luz, alinhados em
ruas enlameadas que os políticos vão inaugurar
com pompa; assim, constata a miséria dos índios, dos trabalhadores, das
meninas de vida airada.
E, se expressa, desenhando tudo o
que vê e o agrada: um bicho-preguiça, uma garça, um rosto, um barco, uma
paisagem.Ou, o que repudia: a violência dos jogos esportivos nas quadras da
escola que representa no movimento dos corpos a correr, a girar, a cair, a se
contorcer , nas expressões surpreendidas em caretas terríveis. Ou o que
abomina: aqueles homens persuadidos de que são donos do país (e de sua gente) que
revela, em caricaturas, nas quais, mais do que o grotesco da representação,
está forjado um testemunho de valor. De um general, o rosto rechonchudo, olhos afundados, de vidro, uma papada de peru de
onde escorriam medalhas e cadáveres. De um marechal-presidente, a cabeça rombuda, espinhenta e pré-histórica
de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto numa carapaça. Ao redor das
patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições grotescas.
De Manaus, do cenário no qual a
cidade se inscreve, de seus próprios conflitos, nada deixou. Seus desenhos
foram destruídos, se perderam ao longo da vida dispersa e sem rumo que levou. Prevaleceu,
no entanto, e com êxito, a obra de um
outro artista (ou presumível artista) cujas telas mostravam paisagens com
sorridentes índias nuas, enormes araras
coloridas cujas asas se abriam para voar
num céu dourado a iluminar a floresta.
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