domingo, 7 de maio de 2006

As meninas do caos


             Ao me dirigir para o carro, vi o grupo de garotas, a maioria com idade entre treze e quinze anos, fazendo ponto na calçada, expondo-se seminuas na tentativa de atrair fregueses para um programa. Na verdade, nada que já não soubesse. Jornalista, preparava uma reportagem sobre prostituição infantil. Saíra da redação, como sempre de madrugada e ao atravessar a rua e chegar do outro lado o orelhão tocou. Logo, passando entre as meninas para chegar ao carro, uma lhe chamou a atenção. Aparentemente, nenhuma relação houve entre o tilintar do telefone e a menina. O suficiente, no entanto, para impressioná-lo como irá relatar, mais tarde, ainda com a imagem da menina que não lhe sai da cabeça.  

            É assim que se inicia “Um orelhão toca na noite”, conto que faz parte do volume Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organizado por Rinaldo de Fernandes que a Geração Editorial acaba de lançar. Primeiro, dizendo dessa emoção que perdura na lembrança dos olhos grandes, do corpo franzino, da tentativa de se passar por mulher. Depois, o relatar de seu ir e vir nessa noite, do que vinha lhe acontecendo na redação do jornal onde trabalhava, os conselhos dos amigos, as pistas falsas que os colegas lhe davam e a presença de deputados, juízes, empresários, escroques e filhinhos de papai, sugerindo que algo tinham que ver com a matéria que ele estava escrevendo. E o ser chamado à direção do jornal e ouvir as razões que ocultavam a ameaça de ser mandado embora antes de ser designado para uma reportagem sensacionalista numa cidade do interior, afastando-o, assim, da matéria comprometedora sobre fatos que ninguém ignora e que, embora monstruosos, muitos querem mascarar, esconder para que, protegidos por um silêncio conivente, continuem a vicejar. São tais fatos que o narrador-personagem tem diante dos olhos ao sair da redação do jornal e entrar no seu carro: o grupo de meninas, o carro que estaciona, a menina que se aproxima e entra, o carro que se afasta. Cena que se repete e torna a se repetir.

            Como se repetem, para ele, o som do orelhão a tocar e a imagem da menina cujo rosto de criança a maquiagem pesada não consegue esconder e cujo corpo franzino não terminara, ainda,de crescer. Mas, se imagem e som se diluem no cotidiano – no dia seguinte esquecera orelhão e menina – ao escutar a notícia no rádio de que uma menina fora encontrada morta, com sinais de violência, ele se sobressalta. Tem certeza de que era ela e se martiriza imaginando-se culpado, pois a vira entrar num carro que poderia ter fotografado ou cuja placa poderia ter anotado. Porém, à noite, novamente ao sair da redação do jornal, ele a vê, entre as outras, com a mesma pequena saia que de tão curta, mais parecia roupa de boneca que ela havia vestido por engano ou brincadeira, a fazer o ponto e sente um alívio imenso. “Como se não tendo sido ela a menina assassinada, não tivesse havido assassinato. Porém, o orelhão toca e ele se lembra da garota assassinada e se dá conta de que outras garotas continuarão a ser mortas escreva ele ou deixe de escrever a reportagem sobre prostituição infantil. E, nesse constatar que a palavra é inócua e nada irá mudar nos fatos desse mundo, quase sempre cão, se instaura, também, a cruel violência feita da submissão ao inútil e ao precário da lucidez.

            O conto de Geraldo Maciel, um ficcionista que é professor do departamento de Engenharia da Produção da Universidade Federal da Paraíba, fala de coisas chãs: aos poderosos e aos ricos, tudo é permitido, aos assalariados compete obedecer, a liberdade de imprensa é regida por suas próprias leis e seu personagem-narrador, igual a todos os que têm olhos para ver se mostra despreparado para enfrentar a vergonhosa realidade das meninas que se prostituem. Algo assim como um chamado a partir do caos, só o orelhão continua a tocar no silêncio da noite.

            Na contra-capa do livro a pergunta: o que os escritores podem fazer senão retratar esse caos assustador?

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