
É
assim que se inicia “Um orelhão toca na noite”, conto que faz parte do volume Contos
cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira
contemporânea, organizado por Rinaldo de Fernandes que a Geração Editorial
acaba de lançar. Primeiro, dizendo dessa emoção que perdura na lembrança dos
olhos grandes, do corpo franzino, da tentativa de se passar por mulher. Depois, o relatar de seu ir e vir nessa
noite, do que vinha lhe acontecendo na redação do jornal onde trabalhava, os
conselhos dos amigos, as pistas falsas que os colegas lhe davam e a presença de
deputados, juízes, empresários, escroques
e filhinhos de papai, sugerindo que algo tinham que ver com a matéria que
ele estava escrevendo. E o ser chamado à direção do jornal e ouvir as razões
que ocultavam a ameaça de ser mandado embora antes de ser designado para uma
reportagem sensacionalista numa cidade do interior, afastando-o, assim, da
matéria comprometedora sobre fatos que ninguém ignora e que, embora
monstruosos, muitos querem mascarar, esconder para que, protegidos por um
silêncio conivente, continuem a vicejar. São tais fatos que o
narrador-personagem tem diante dos olhos ao sair da redação do jornal e entrar
no seu carro: o grupo de meninas, o carro que estaciona, a menina que se
aproxima e entra, o carro que se afasta. Cena que se repete e torna a se
repetir.
Como
se repetem, para ele, o som do orelhão a tocar e a imagem da menina cujo rosto
de criança a maquiagem pesada não consegue esconder e cujo corpo franzino não
terminara, ainda,de crescer. Mas, se imagem e som se diluem no cotidiano – no
dia seguinte esquecera orelhão e menina – ao escutar a notícia no rádio de que
uma menina fora encontrada morta, com sinais de violência, ele se sobressalta.
Tem certeza de que era ela e se martiriza imaginando-se culpado, pois a vira
entrar num carro que poderia ter fotografado ou cuja placa poderia ter anotado.
Porém, à noite, novamente ao sair da redação do jornal, ele a vê, entre as
outras, com a mesma pequena saia que de
tão curta, mais parecia roupa de boneca que ela havia vestido por engano ou
brincadeira, a fazer o ponto e sente um alívio imenso. “Como se não tendo sido ela a menina
assassinada, não tivesse havido
assassinato. Porém, o orelhão toca e ele se lembra da garota assassinada e
se dá conta de que outras garotas continuarão a ser mortas escreva ele ou deixe
de escrever a reportagem sobre prostituição infantil. E, nesse constatar que a
palavra é inócua e nada irá mudar nos fatos desse mundo, quase sempre cão, se
instaura, também, a cruel violência feita da submissão ao inútil e ao precário
da lucidez.
O
conto de Geraldo Maciel, um ficcionista que é professor do departamento de
Engenharia da Produção da Universidade Federal da Paraíba, fala de coisas chãs:
aos poderosos e aos ricos, tudo é permitido, aos assalariados compete obedecer,
a liberdade de imprensa é regida por suas próprias leis e seu
personagem-narrador, igual a todos os que têm olhos para ver se mostra
despreparado para enfrentar a vergonhosa realidade das meninas que se
prostituem. Algo assim como um chamado a partir do caos, só o orelhão continua
a tocar no silêncio da noite.
Na
contra-capa do livro a pergunta: o que os
escritores podem fazer senão retratar esse caos assustador?
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