domingo, 23 de abril de 2006

Um certo olhar


A idéia inicial de Hugo Studart era mostrar, com vistas a um trabalho jornalístico, os discursos, na acepção que Michel Foucault dá ao termo, das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia. Ao conversar, porém, com militares que participaram no combate a essa insurreição, seus depoimentos o levaram à busca de outros, à pesquisas em documentos, periódicos, relatórios e o fizeram depositário de um importante material que usou, então, na dissertação de Mestrado para o Departamento de História da Universidade de Brasília: “O imaginário dos Militares na Guerrilha do Araguaia (1972-1974)”. Defendido em 2005, seu trabalho, revisto e aumentado, se constituiu o livro A lei da Selva que a Geração Editorial acaba de publicar. Seu subtítulo, “Estratégia, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia”, indica objetivos precisos na procura de saber o quê buscavam, como pensavam, de que tinham medo os militares e no empenho em tornar público o resultado de sua pesquisa sobre episódios que têm permanecido ocultos, mas que devem ser trazidos à luz. Assim, as circunstâncias em que morreram lutando os desaparecidose onde estão os seus corpos. Porque, até agora, somente o corpo de Maria Lúcia Petit da Silva foi encontrado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em 1991, sem cruz, nem placa de identificação, no cemitério de Xambioá. De outras guerrilheiras restou apenas um testemunho.  

            Dinaelza Santana Coqueiro, a Maria Diná, estudante de Geologia na Bahia, era conhecida guerrilheira . Tinha, entre os moradores da região e os militares, a pecha de valente, corajosa, perigosa. Foi apanhada pelos pára-quedistas e levada para Marabá onde agüentou cinco ou seis dias de pau violento, como diz o militar que a matou. E’ ele quem relata a sua execução: a pistola travara e teve que pegar outra. Um companheiro de armas se aproximou para ajudar a fazer o serviço, expressão que era usada (como mandar para o saco) para substituir os verbos matar, exterminar, executar os prisioneiros que já estavam sob a custódia do estado. Lembra que a guerrilheira, sem chorar, olhava para ele com ódio, um ódio fantástico, ódio, muito ódio. Ao lhe ser perguntado o que tinha sentido diante dos olhos de sua vítima, respondeu que nada, pois estava preparado para fazer aquilo mesmo.

            Reação diferente daquela do militar que matou Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a Dina, cuja presença de quatro anos na Guerrilha foi extremamente marcante. Por sua determinação, guerrilheiros a obedeciam. Pela sua coragem testada nas armas, soldados a temiam. Para os militares que entraram na mata, rondava o temor de sua aparição. O depoimento de um militar que esteve entre os que lutavam na selva a revela mulher forte e determinada, um perfil que se completa pela sua fama de implacável, invencível. Foi presa em junho de 1974, por uma patrulha do Exército. Magra, enfraquecida pela alimentação precária, foi levada para Marabá onde ficou cerca de duas semanas, submetida a interrogatórios até ser levada, de helicóptero, para algum ponto da floresta, perto de Xambioá. Com as mãos amarradas nas costas, caminhou, com o grupo de três militares, uns duzentos metros até a clareira em que eles pararam.. Perguntou se iria morrer e pediu para morrer de frente, agindo como guerrilheira: de pé, lutando até o último instante, “morrer com a dignidade de um revolucionário de seu tempo. O executor acedeu e ainda disse: Então vira prá cá. Ela obedeceu e o encarou nos olhos. Um olhar em que havia mais orgulho do que medo, ele contaria, depois, para seus companheiros de farda. Aproximando-se lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. Dina levou, ainda, um tiro na cabeça. Ali a enterraram e seu corpo nunca foi encontrado. O executor também contaria que ficou por muito tempo com o olhar de Dina na cabeça.

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