domingo, 2 de abril de 2006

Quase nada

         
Um narrador tradicional – aquele que parece tudo saber – fixa no conto “A liberdade dos varais” o momento em que ela olhou as roupas secando ao vento e desejou a liberdade dos varais, acreditando que possuem uma felicidade  inerente de tarefa realizada, da fibra revendo o sol, umidade liberada aos poucos, para se impregnar da luminosidade de um dia de verão. Há menção à água corrente, à densidade branca, ao cheiro de roupa limpa, ao vento que levanta as folhas e um pouco de poeira, às recusas e dúvidas que não liberam e à submissão feminina aos usos estabelecidos. Uma lágrima corre enquanto ela fica ali, à sombra do abacateiro, imaginando mundos, triste como quem desistiu. Submissa aos desassossegos. Sorri, limpa o rosto com a mão ao ouvir a voz do filho que a chama da sacada, contente por vê-la ociosa no quintal e a faz lembrar que tinha roupa para lavar, comida para fazer, meias para cerzir. E cicatrizes que não suportaria emendas.
 

            Na primeira pessoa, a voz do conto “Não teve nada de mais”, a lembrar (ou relembrar) o momento muito preciso de seu passado em que deixa um mundo para trás e parte no caminhar torturado de quem vai sem querer ir, ciente de que todos os mapas confirmam o norte como o contrário da direção e com o qual inicia o relato: no dia em que eu fui embora[...]. Um partir que a despedaça porque, se leva muito pouco (Da alma, só uns pedaços, uns discos, as louças da família, as toalhas bordadas em ponto cruz), menos, é o que deixa, embora deseje que dela fique um perfume, uma sombra, algo de imóvel. Mas, o que, de fato, se faz presença é a cerimônia da despedida – olhar pela última vez, silenciar porque não há mais nada a dizer, tornar-se estranha ao cenário do qual fizera parte – num desenrolar, à margem de qualquer circunstância ou sinal, a marcar o vazio que impera nas ausências: nem um adeus generoso, uma intenção de abraço, nenhum titubear. Depois de cruzar a porta da rua, tampouco os vizinhos acudiram ou houve um badalar de sinos, um uivar de cães, um soprar do vento. O mar não se dividiu, o sol não se apagou.           No dia em que fui embora a voz repete, já agora acrescentando não teve nada de mais a encerrar o relato que apenas sugere o talvez imprescindível valor da promessa, da verdade perdida, da desesperança porque se esmaecem no ritual da partida, feita de toques, de olhares, da mágoa em relação aos relógios que deviam silenciar em memória da vida que se despedia também, da compreensão de que tudo vai tornando passado o que ainda não é.

            Publicados em Teresa, que esperava as uvas, esses dois contos, entre os que testemunham o seu tempo a relatar a violência urbana, a solidão, a crueldade que faz trincar os afetos, surpreendem um efêmero fragmento de vida. Como se um antes ou um depois não importassem, o relato capta, num relance o sentir momentâneo que pode advir de um olhar, de uma escolha. Nesses pequenos nadas, Monique Revillion descobre a emoção que alimenta o seu texto. Ao perseguir o âmago dos personagens, sua alma, suas percepções e sentimentos, a maneira como esses personagens percebem os fatos, como diz, ela encontra muito dessa humanidade presente em todos nós e a expressa na sobriedade de uma linguagem onde ora irrompe a riqueza de um símile, ora o inesperado da metáfora.

            Premiada no Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, com textos publicados em antologias e revistas literárias, Monique Revillion reúne seus contos, pela primeira vez, em livro publicado, neste ano, pela Geração Editorial de São Paulo. Com sua bela capa que, em acorde com o título, se mostra no desenho de um cacho de uvas, onde a figura de um peixe, de arabescos e de linhas em espiral remetem a um ou outro conto e em que andorinhas, borboletas, abelhas flores e folhas, representadas em azul, verde e lilás que se alternam em tons mais ou menos suaves, inscrevem sonhos num mundo de realidades, Teresa, que esperava as uvas inicia uma trajetória que dispensa trilhas conhecidas e modelos outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário